terça-feira, 2 de setembro de 2025

PREFERÍVEL A AUTOFAGIA A SER DEVORADO POR CANIBAIS

 

PREFERÍVEL A AUTOFAGIA A SER DEVORADO POR CANIBAIS

Por Inácio Pimentel

 

O título deste texto, talvez seja provocador, mórbido ou, quem sabe, nauseante. No entanto, na raiz desse título reside o desejo de refletir sobre duas possibilidades trágicas na vida de alguém; sobretudo, no universo cristão: se entregar a autofagia ou sucumbir ao canibalismo fratricida de “amados irmãos”?

Talvez seja possível cogitar opções menos drásticas; contudo, a realidade histórica de abuso religioso em inúmeras denominações, no Brasil; somado à ilusória ideia de que no seio do protestantismo evangélico tudo se desdobra, segundo o compasso de Jesus e mais o abundante mau exemplo do judiciário brasileiro que repercute, não raras vezes, no modo como algumas pessoas tratam as “coisas de Deus”, como se fossem um puxadinho de suas casas, por conseguinte, sem o mínimo de adequação ao acervo jurídico/institucional. Tudo isso conduziu-me a pensar que neste bruto cenário somos tragados pelo canibalismo fraterno de nossos irmãos, ou fazemos a concessão de nos saborear, jamais deixar que nos saboreiem.

Ambas as palavras são usadas em sentido metafórico; sem deixar, entretanto, de admitir que a grotesca concretude da vida pode contribuir para a extrapolação da linguagem metafórica e aterrissar na literalidade do hostil solo transitado por nós. Sabendo disso questiono: O que seria melhor, devorar-se ou ser devorado? Imagino que o deleite de se autoconsumir impõe-se como melhor proposta pelas seguintes razões:

 

Em primeiro lugar, por que o devorador é sanguinário e impiedoso, porém carrega em seus trejeitos o doce magnetismo do sagrado. A religião é o ópio a mascarar corações apodrecidos e entorpecer mentes incautas.  

Com efeito, diante da apavorante propensão da natureza humana em direção ao mal, inclusive de cristãos tão amáveis e puros de coração, presume-se que a vida, peregrina como uma pequenina centelha num denso nevoeiro que, inevitavelmente, será engolida pela escuridão eterna.

No salmo 124 o salmista expõe a crueldade humana, mas também a ação protetora do Senhor: “Se o Senhor não estivesse do nosso lado quando os nossos inimigos nos atacaram, eles nos teriam engolido vivos” (vs.2 e 3 – NTLH). Mais adiante ele arremata: “Bendito seja o Senhor, que não nos deu por presa aos seus dentes” (v. 6 -  ARC). Paulo, o apóstolo, ressalta, com refinado sabor teológico que “[...] todos (a humanidade inteira) se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm. 3:12 – ARA). Ao escrever aos Coríntios, Paulo, a voz profética, assinala a total ausência de civilidade, amor e respeito entre os irmãos daquela igreja; ausência de respeito e consideração que respingou no próprio apóstolo, vez que aquela igreja constituída de ‘santos’ questionava a autoridade apostólica, deste, que havia nascido fora de tempo.

O breve relato acima demonstra a gigantesca tensão entre o ser cristão e o ser mundano que, em discrepante atuação gera um ser/monstro que transita em dois mundos radicalmente opsotos.

Desse modo, a autofagia se legitima, na medida em que o ser autofágico toma esse caminho por constatar que aqueles que foram chamados por Cristo, para serem devorados pelo mundo (cf. Mt. 5:10-12; 10:22; Jo. 15:18-20; 2Tm. 3:12; 1Pd. 4:12-14) se tornaram devoradores de seus irmãos. Em suas “reflexões sobre os salmos, C.S. Lewis diz: “De todos os homens maus, os maus religiosos são os piores. Alguns podem achar estranho que a religião, que deveria curar o nosso pior, acabe por agravar justamente esse pior. Mas o motivo é claro: a religião dá ao orgulho e ao ódio um disfarce sagrado. Assim, o homem pode entregar-se às piores paixões da natureza caída com a consciência tranquila, convencido de que está servindo a Deus”.

Em nome de Deus e, às vezes, da “sã doutrina”, da moral e dos bons costumes, matamos o próximo, enquanto erguemos um altar de fervorosa oração ao Senhor.

Convém destacar que a história da igreja está fartamente recheada de capítulos dramáticos, nos quais a conspiração, perseguição e morte de adversários foram arquitetadas por “homens de Deus”.

Seguindo o pensamento de C.S. Lewis, podemos afirmar que o mau religioso, a rigor, é um lobo voraz e sanguinário que estraçalha sua presa, com a firme convicção de que está a serviço da pia missão divina entregue em suas mãos pelo próprio Altíssimo (cf. At. 9:1-2). Assim, a autofagia emerge da resistência de quem se opõe aos protagonistas do vampirismo psíquico/espiritual; brota do vigor de quem se enxerga impotente diante da aniquilação do império da lei e, a consequente, entronização da vontade despótica que sequestra consciências e mata esperanças; vem à tona, porque não se dispõe a ser oferecido para saciar a fome de poder de quem, pela manipulação, conquista almas insipientes, todavia, cheias de orgulho do alto saber que adquiriram; desponta no palco de quem não se permite ser consumido, tampouco hesita em apontar que a mão que alimenta o monstro hoje, amanhã será devorada por ele.

Portanto, ser autofágico constitui a enérgica decisão de saborear-se lentamente no caminho do autoexílio deste mundo; pois, melhor, voltar os dentes contra si mesmo, num banquete solitário, a se entregar à mesa da gula voraz de quem não vê o outro como pessoa, mas como tolo a ser submetido à discricionariedade de sua vontade.

A segunda razão validante da autofagia é o reconhecimento de que existem devoradores ingênuos. Daí a obstinação de não consentir que o devorador, na avidez de sua infantilidade, afie seus ousados dentes na carne que não lhe pertence.

De fato, o pueril devorador devora sem saber-se devorado. Assume causas, sem entendê-las; joga o jogo sem perceber-se joguete do verbo e atos dos manipuladores; transforma assuntos sérios numa arena de diversão infatiloide. Por meio da análise comportamental de tais devoradores/ingênuos poder-se-á concluir que perderam a consciência de si e atravessaram a fronteira da loucura. Assim, tornam-se mais perigosos, porquanto, a semente da ambição plantada na alma do ingênuo pedante, o faz esquartejar suas vítimas, sem perder as feições beatificadas da Madre Teresa de Calcutá.  

Outras vezes, absolutizam o lúdico e esfolam suas presas, como se tudo não passasse de uma brincadeira. Matam honras, destroem reputações, estraçalham a dignidade do outro, com mentiras prontas e boatos engenhosamente articulados. Razão: a incapacidade de impedir a eclosão da mediocridade de suas almas e, não raro, uma espécie de competição para arrancar de seus caminhos, qualquer um que perceba o quanto são obtusos.

Torna-se evidente, no entanto, que tais crianças do mal, não se dão conta de que enquanto avançam, em sua sanha devoradora, já estão sendo devoradas por outros predadores que, no topo da cadeia alimentar, já comeram o cérebro do devorador acriançado.

O devorador simplório é um vilão adormecido. Não no sentido do ato, mas da consciência. Para ele não há vilania em seus atos. Como narcisista de ponta de rua, não se percebe mau, mas somente alguém a serviço de uma causa nobre; e, quando questionado, vitimiza-se com trejeitos de santo dizendo que ninguém o entende; daí não repara na força da decomposição a exalar mau cheiro de seus atos e palavras.

Este ciclo violento é alimentado pela vaidade e ambição de ingênuos fatais. Gente que aplaude, inconscientemente, a própria desventura. Neste caso, é pertinente reafirmar que a autofagia diz não as armadilhas, abre a boca e degusta a própria mão, antes de aplaudir quem a conduz para o abismo.

O devorador tolo, em regra, é ruidoso, falastrão. Embebido em seu caráter se encontra a vingança, pois esta lhe fornece um breve sentido à vida, visto que sua vida, sem este sentido, não passa de uma miragem.

Importante ressaltar, que, neste cenário, a religião é transformada no ambiente apropriado, para mascarar corações apodrecidos; projetar tolos prodígios e elevar ao topo da fama a mediocridade, até que todos, inebriados pelo poder, ou pela inconsistência dele aceitem dançar em uma corda esticada sob o abismo.

Em terceiro lugar, a autofagia é atraente por ser um ato de resistência. É dizer “não” à entrega fácil diante de bufões, ditadores dissimulados que no microcosmos vividos por eles, experimentam seu momento de glória, ao reproduzir, em tom de pompa, o que se desenrola na ambiência macrocósmica; notadamente no Brasil, onde a soberba de Xandões impera.

Neste sentido, a autofagia não cogita ser mastigada pela dissimulação de almas, doentiamente, venais; nega-se passar pelo rolo compressor das esquisitas compreensões de mundo e da fé cristã que se concretizam nas santas vontades e caprichos de figuras totalmente imodestas; resiste à ordem do dia imposta por impostores que, à semelhança de Lúcifer, buscam ardentemente ter seus egos acariciados no palco do estrelato, no qual, inconfundíveis charlatões teológicos/jurídicos aplaudem e são aplaudidos pela respeitabilidade de um camundongo. 

Finalmente, a tentação autofágica revela seu enorme poder de mobilizar a alma, porque é um sim a si mesma. É apossar-se do comando da locomotiva da vida e conduzi-la à última estação da existência. Na obscena terra canibalesca é mais palatável possuir-me. Se o fingimento lançar seus tentáculos, a fim de estrangular-me, que eu me adiante a ele, para que num pacto personalíssimo, talvez sombrio, contudo, livre, ao invés da rendição opte pela autofagia.

É pertinente frisar que como criança que se perde em meio a brinquedos novos, desejo perder-me em mim mesmo... aos pouquinhos, sem pressa, degustando cada fiapo da epiderme de minha existência. Num cenário, no qual o poder é exercido sem a legitimidade da lei; onde a aplicação de penas e sanções disciplinares se transformaram em instrumento político; onde armadilhas são, habilmente, colocadas, de maneira que, nem mesmo, as vítimas se dão conta da morte sufocante que as estrangula, a autofagia promove a prazerosa destruição do prazer devorador do inimigo; porquanto, o render-se a autoextinção consiste na heroica recusa de se entregar, em bandeja de prata, aos bafos maledicentes de quem, absurdamente, tenta nivelar o caráter do outro pela régua do mau-caratismo impregnado em sua carne.    

Na renúncia de ver-se aniquilado na saliva corrosiva de bocas malditas repousa um gozo que transcende o movimento ligeiro da vida; posto que, a arrepiante, sensação de ser despedaçado, de ver cada fibra separada e lembrar de homens e mulheres, realmente piedosos, protagonistas de nossa história, passa-se a compreender que não é a morte que seduz, mas o ato de não cair de joelhos diante da justiça farisaica dos noviços “teologuinhos”, ou dos broncos “jurispatetas” e “hermeneuticidas” que, espantosamente, sem nenhum pudor, se descobriram doutores da lei.

Essa mentalidade, não obstante deslocada, é ovacionada como a quintessência da intelectualidade.  Risível, entretanto, compõe o ilusório tecido que enlaça o cérebro de quem acredita em duendes.

É lícito supor que essa retórica escancara a fome de maledicentes tão fervorosamente santos; tão brutalmente piedosos; tão boçalmente humildes; tão falsamente verdadeiros; tão amavelmente cáusticos e tão cinicamente comprometidos com a verdade... As rédeas do poder em suas mãos, diferente de Jesus, não está para servir (Cf. Mt. 20:28), tampouco para libertar (Cf, Jo. 8:36), mas para domesticar e aprisionar mentes.

Diante dessa cruel realidade, há uma certa dose de satisfação na autofagia, visto ser ela heroína a impedir que crentes e fiéis discípulos de Cristo: homens e mulheres, em alto grau devotados à Bíblia e à oração, que vivem o perfeito amor divino e são, inteiramente, guiados pelo Espírito Santo encontrem repouso na epiderme da alma de quem se recusa a submeter-se a tão divinizadas mentes.

Assim, no instante da própria devoração, o ser deixa de ser o que construíram a seu respeito, com o intuito de desonra-lo, para ser, apenas o eu, que se dissolve naquilo que o consome: a angústia de ver cristãos, tão santamente satânicos.

 


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