ESSA
TAL....
Todos
a amavam. Não se tratava de um amor escancarado, porque todos a odiavam.
Ninguém queria ser visto com ela. A uma pequena menção de que alguém flertou
com a casta rapariga, era razão para negativas veementes; solicitações de
respeito contundentes e vociferações raivosas; afinal, valia de tudo para
jamais se admitir a mais remota relação com tão afamada companheira de
caminhada. Era desprezada, escarnecida, desonrada... donzela de dores e que
sabe o que é padecer.
Na
alcova da alma faziam amor com ela, se lambuzavam em suas delícias, deliravam
em seus beijos, se derretiam envolto em seus carinhos. À luz do sol, todos a
enxotavam, levantavam o olhar pedante e no pedestal de suas superioridades,
nela cuspiam, espancavam-na e diziam preferir morrer à vida em um átimo de
segundo ao lado dela.
Assim,
padres, pastores, clérigos de todos os matizes religiosos, políticos, gente
simples do dia-a-dia, em perfeita sintonia com pessoas do alto escalão,
amavam-na tão intensamente que, sob nenhuma hipótese, imaginavam viver sem seus
aconchegos. Contudo, era um amor não compreendido por ela; porquanto, usavam-na
todos os dias. Bebiam o vinho derramado por entre seus seios, se enroscavam
perdidamente em seus braços e despejavam seus mais profundos e vorazes sentimentos
em seu corpo... No entanto, da recatada dama da noite se envergonhavam. Era um
amor esquizofrênico!
Eu
sei que me amam, diz ela. Desejam-me! Buscam-me, porque buscam a si mesmos!
Querem-me sofregamente, posto que se perderam de si e só se encontram em mim!
As palavras de todos, só faz sentido, porque nos múltiplos universos nos quais
vivem, invocam minha presença. Sempre a postos, apresento-me sobranceira,
pomposa, carregada de amabilidade, olhar cativante, gestual contagiante, as
vezes manhosa, sorrisos apaixonantes, humor público jamais destoante, estampa
piedosa, de quando em vez um pouco espirituosa... esta sou eu! É, sem mim, nada
podem fazer! Aliás, sem minha doce companhia, nada são! Sou volátil, gelatinosa
e procuro ser o que a circunstância exige de mim; segue-se, pois, que sou
apenas o construto das contingências de pessoas que me odeiam no amor que visceralmente
sentem por mim.
Não
obstante usada e abusada, vivo com leveza, sem traumas e sempre em harmonia com
tudo e com todos. Sou útil à sociedade. Que me esculachem! Que zombem de mim!
Que de mim pintem um pavoroso retrato! Nada disso importa! Afinal, quando o
cônjuge infiel ama a quem jurou fidelidade, ama por minha causa. Quando o
clérigo vive emporcalhado em ofensas a Deus, mas prega santidade e temor ao
Senhor é porque eu estou lá. Quando o político vive enfurnado na corrupção, mas
discursa em favor da vida decente e irrepreensível, foi incentivado por mim.
Quando o arrogante, serena os olhos, baixa a cabeça e se lança aos braços do
outro dizendo-se servo, estou aí também!
A
monstruosa relação de amor e ódio mantida com essa virgem impudica compõe a
substância do caráter de quem a ama e odeia; visto que a contradição ético/moral
alimenta seu aguçado apetite.
A
vida passa a se desdobrar num horroroso labirinto condutor, cada vez mais, a um
louco e angustiante ambiente fechado, sem uma nesga de luz a dar esperança de
que algo pode mudar. Os arranjos promovidos pela vestal sócia do caráter de
quem com ela fez acordo, jamais permite que seu fogo seja apagado, sequer,
esmaecido. Desse modo, o buraco da alma se torna imensurável, contudo,
imperceptível, pois o buraco, de tão intrínseco à alma, já não pode notar a
mais pálida diferença.
A
própria alma se reconhece neste deplorável estado e dele não tem pretensão de
sair, visto que sua vida se retroalimenta dessa relação que, ao sufocar as
possibilidades do eu redimido, se
torna um com o eu escravizado à
imagem que construiu de si mesma; decorrendo daí um tipo de relação incestuosa.
Neste
cenário, clérigos amoldam seus sermões às expectativas da plateia. Corruptos
reverberam discursos que os coloca no altar de consciências probas. Infiéis juram
amor a seus cônjuges, enquanto vivem na promiscuidade. Devotos penhoram fé em
seu Deus, ao tempo que flertam com tudo que desborda de seus valores e
princípios. Amigos declararam lealdade, ao passo que estão apenas em busca do
que circunstancialmente o outro pode ser útil.
Nessa estúpida engenharia de aparências, a confiança se esvai, a esperança de dias amenos desmorona, a linguagem sadia e sem segundas intenções desaparece, amizades puras e despretensiosas evaporam... restando àqueles que, aos moldes de Simplício, personagem do romance de Joaquim Manuel de Macedo “A Luneta Mágica”, desenvolver a paradoxal e angustiante vida de credulidade ingênua, ou de cínico ceticismo. Ou, quem sabe, submergir ao fantasma do niilismo, porquanto, o sentido não faz mais nenhum sentido, num mundo que morre de amores por essa tal... HIPOCRISIA !
Inácio Pimentel
Que texto lindo pastor! Enigmático! Digno da academia brasileira de letras! Deus abençoe sua inteligência e perspicácia cada dia mais!
ResponderExcluirLindo texto poeta Inácio
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir"essa tal" é necessária e indispensável para sustentar as frágeis relações de conveniências.
ResponderExcluirParabéns pela inspiração!