ENTRE
O CETICISMO E O CINISMO: DESISTI!
A
Bíblia é farta em palavras de encorajamento, orientações sobre perseverança e firmeza
na hora da luta. O cristão é instado a jamais desistir do que é justo, conforme
padrão esculpido por Deus em sua Palavra.
Importante,
ressaltar, contudo, que tais palavras, comumente, remetem o leitor bíblico a
ideia de nunca desistir do projeto, cuja arquitetura foi elaborada pelo próprio
Senhor. Assim, não obstante o fiel vivenciar as mais brutais experiências no
relacionamento com seus semelhantes, ele
deve, a rigor, olhar para o Cristo brutalizado e impiedosamente morto por gente
que arvorava estar a serviço de Deus; quando, em verdade, a nota dominante de
suas ações era o insano desejo de eliminar da arena pública Àquele que
reverberava a todos, que o poder só serve, se for para servir ao próximo e que
a justiça só é justa, quando o agente está disposto a negar o que é justo aos
seus próprios olhos, a fim de que o justo, sob a ótica da Lei e ética divina prevaleçam.
Na
mesma sintonia dos assassinos imediatos do Cristo/Amor (cf. Lc. 23:1-49), transita,
hoje, um gigantesco contingente de pessoas que, embora se identifiquem como
cristãs, vivem imersas num mundo paralelo onde reina uma cultura radicalmente
oposta à proclamada pelo Cristo/Transformador (cf. Mt.
5:43-49).
Diante
dessa absurda atmosfera, na qual nos retroalimentamos de nossos ódios
latejantes na alma, invejas mal disfarçadas, expressões de amores azedados,
amizades circunstanciais e fortemente marcadas por conveniências, elogios que
mascaram o figadal desejo da queda do outro.... Confesso, em lágrimas, que
desisti.
Desisti
porque ante essa pintura macabra, parece-me que o (des)caminho nos conduz,
inapelavelmente, a uma encruzilhada, onde a opção do próximo passo é o ceticismo:
duro, embrutecido, ressentido e que se auto exila em busca de não intensificar
a enfermidade que estrangula a alma; ou
o cinismo:
risonho, serelepe, mascarado, carregado de espiritualidade e amor, porém... cínico.
Desisti,
pois meu corpo dói, meus olhos choram, minha alma murcha e meu espirito vive
espantado ante o terror que liquida o próximo através das maledicências e da
disseminação de fake news (uso o termo na escorreita acepção política que
tomou) que se veiculam por meio de ações tão piedosas, tão etéreas, tão
divinamente oraculares, tão santas... que o que resta, a nós míseros pecadores
é, apenas, de joelhos, agradecer a tão grandiosa bondade da peçonha que
enrijece os nervos e explode nosso coração. São venenosos, mas são tão santos,
tão justos, tão democráticos, tão irrepreensíveis, tão...
Desisti,
posto que não há um fiapo de mim que suporte esse mecanismo de morte que mata
orando e recitando salmos de louvor à soberania divina, ou articulando palavras
de Jesus sobre amor, enquanto o cadáver do morto que matamos desce solenemente
ao túmulo: físico? Psicológico? Da má reputação, por conta da implacável
maledicência de pessoas tão publicamente maravilhosas?
Desisti
em razão de minha alma se encontrar enfastiada..., talvez à beira da loucura, ao
ver tantos amigos, que em público rasgam elogios uns aos outros, enaltecem seus
grandes feitos, aplaudem suas obras e se exprimem como a quintessência do amor
e lealdade.... Todavia, nos bastidores, derramam o que realmente pensam uns dos
outros; e, nesse derramar, tudo o que se afigura são ácidas críticas, rancores
adormecidos, ódios enclausurados, invejas maquiadas....
Desisti,
uma vez que, àqueles que insistem no caminho da bondade e correição vivem com a
coragem minguada o suficiente a ponto de lhes impedir de alçar voz as alturas,
como João Batista fez contra Herodes (cf. Mc. 6:17-19). Desse modo, com receio
de perderem a cabeça, se calam e ficam à espera de um herói que à maneira da Geni,
de Chico Buarque, os livre daquele repugnável comandante do pavoroso Zepelim,
para em seguida ser apedrejada.
Desisti nauseado
de discursos recheados de apelos democráticos; no entanto, os mesmos que
discursam, alegando-se democratas, na menor oportunidade que têm de ascender ao
poder escancaram a irreprimível vocação à ditadores mirins. Tais pessoas se
sentem tão imperturbavelmente emponderadas, tão monocraticamente decisivas, tão
despoticamente mandatárias e tão narcisivamente cheias de si; que, se pudessem,
construiriam um trono e se postariam como deuses dum Olimpo, no qual Zeus, o
mais poderoso da mitologia grega, seria reduzido ao pó e os demais súditos,
pusilânimes, se prostrariam quietos, calados e atribuiriam sua postura, a uma
certa “espiritualidade”, ou “ética olímpica” que não permite um farelo de
questionamento, sob pena de o questionador, à maneira do pai de Zeus ser
eliminado do mapa da existência: Moral? Física? Psicológica...?
Desisti diante
da assombrosa constatação de que quanto mais religiosos somos; quanto mais
convencidos de que somos detentores absolutos da verdadeira doutrina; quanto
mais piedosos somos, aos nossos próprios olhos, nos tornamos proporcionalmente
mais aguçados em nossa malignidade. Em frase atribuída a C.S. Lewis, o
celebrado intelectual irlandês, convertido a Cristo, nos deparamos com essa
pérola:
“De todos os homens maus, homens maus religiosos são os
piores”.
Desisti porque
os acordos entre compadres valem mais que a lei, sobrepujam a verdade, são
indiferentes à razão, escarnecem das instituições, espancam a inteligência e,
no fim, sorriem graciosamente para o click
das câmeras, porquanto, o importante é sair bem na foto, visto que o sentido da
vida de tais compadres é fortalecer os laços, de modo que todos fiquem bem em
seus postos de poder. A propósito, o espirito perspicaz de Rui Barbosa capturou
muito bem a situação vivenciada em seu tempo, que calha perfeitamente aos
nossos dias. Diz o grande mestre:
“De tanto ver triunfar as
nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça.
De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a
desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.
Desisti porque percebo que na atmosfera
respirada por todos nós, os entulhos da poluição, própria do velho homem
inconverso, não permite que se lute com base na verdade objetiva, mas nos
achismos a serviço das conveniências pessoais. O que vale não é o acordado,
tampouco o que está escrito, menos ainda o que tacitamente foi convencionado;
mas somente a palavra que estrangula, mesmo sendo, não raro, inverossímil. Com
efeito, a luta se torna inócua, porquanto, no horizonte, apenas um mundo
cinzento se desvela....
Decididamente
não vale a pena lutar. Não por ser a luta apavorante, posto que a pior parte
não é deixar de lutar, mais desistir do objeto que tanto se ama. Bob Marley condensa
essa angustiante crise existencial quando, num poema, diz:
“Difícil não é lutar por aquilo que se quer, e sim
desistir daquilo que se mais ama. Eu desisti. Mas não pense que foi por não ter
coragem de lutar, e sim por não ter mais condições de sofrer”.
Filosoficamente,
no universo humano, não poucas vezes, o sofrimento se expressa como caldo de um
niilismo viscoso, talvez mais denso, mais atrevido, mais bruto..., no fim, o caos
será maior que o imaginado...
No
universo espiritual, no qual a Igreja, Corpo de Cristo, converge a Deus e,
n’Ele, se veicula como suprema perfeição, a história alcança seu clímax e o eco
carnal, da natureza adâmica, integralmente depravada, será de uma vez por todas
silenciado.
Desistir,
portanto, é ato intuitu personae.
Constitui demanda pertencente ao “eucêntrico” quando as opções de
caminhos se revelam um breu existencial. Neste sentido, convém citar Clarice
Lispector:
“Desistir é a
escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano”.
Num ambiente religiosamente cristão, mas cuja ética é diametralmente
oposta ao ensino e práxis de Cristo, desistir, de fato, se torna uma “escolha sagrada”. É o momento em que o
ser desumanizado e embrutecido faz o caminho de volta e se humaniza. Portanto,
numa geografia cáustica, onde a alma vai, gradativamente, murchando até se
perder, “Desistir é o verdadeiro instante
humano”.
Paulo, por exemplo, no limiar da possibilidade da morte, perpetrada por
seus algozes, destilou sua inarredável fé e esperança ao declarar: “Porquanto, para mim, o viver é Cristo, e o
morrer é lucro”. (Fp. 1:21). Morrer em Cristo constitui caminho de volta ao
lar, portanto, lucro.
Mas
afinal, deve-se desistir do quê? Desistir de entronizar o eu nascido de
Adão, a fim de percorrer a carreira proposta pelo eu nascido em Cristo.
Como o apóstolo Paulo, convém lutar tenazmente para escorraçar o eu que se
contrafaz na imitação de Cristo, para que o Eu Crístico seja injetado
na medula de nossa alma; e assim, poder dizer: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo é quem vivem em mim” (Gl
2:20).
Da
agonizante experiência de Jesus, do Getsêmani (cf. Mt. 26:39), ao Gólgota (cf.
Mt. 27:46), aflora a certeza de que existem momentos da vida que uma dor
incontornável esmaga o peito, uma tristeza incontida e teimosa invade o coração
e a monstruosa sensação de morte ruge aos ouvidos: “Minha alma está profundamente
triste até a morte” (Mt. 26:38). Eis a fala de um homem, cujas palavras
reverberavam a convulsionante dor em seu espírito. Importante ter em mente que
Jesus, por óbvio, enfrentou esse momento com a convicção de quem cumpria uma
missão. Foi para isso que veio até nós! (cf. Mc. 10:45).
Os
seres humanos, no entanto, dotados unicamente de visão limitada da realidade
podem flertar com uma realidade para além do alcance de seus olhos. Nas
palavras do poeta, a pessoa neste estado
“[...] é alguém que namora a desistência e tem sonhos
eróticos com a morte. Todavia, deseja de forma desesperada ser amante perpétuo
da vida”.
Os
protagonistas da morte de Jesus romperam as fronteiras geográficas e temporais
e circulam à vontade em nossos dias. Mudaram, evidentemente, o linguajar, a
roupagem e o modus operandi; contudo,
a motivação que os impulsiona a tamanha loucura, lhes permeia, como dantes, a
tessitura da alma: eliminar tudo e todos que, eventualmente, lhes obste o
caminho ao estrelato.
É
possível que quem vive esse perverso drama, não seja capaz de mensurar os
terríveis estragos a si e a outrem, pois a opção pelo ceticismo ou pelo cinismo
ocorre tão sorrateiramente que não se toma ciência
de que a consciência vive absorta no
perigoso mar do flerte entre essas duas opções.
Definitivamente
urge que, prostrados diante do Eterno, tenhamos coragem para desistir em dar o
primeiro passo! Porém, caso a caminhada já esteja em curso, que o arrependimento
seja a brisa a embalar nossas almas. Ante o exposto, desistir sempre! Vender a
alma, jamais!
Que
Cristo, a Vida, seja o parâmetro da
vida de seus discípulos, a fim de que nenhum seja intoxicado pelo cinismo que cauteriza a mente, ou pelo ceticismo que embrutece o coração!