quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

ENTRE O CETICISMO E O CINISMO: DESISTI!

 

ENTRE O CETICISMO E O CINISMO: DESISTI!

A Bíblia é farta em palavras de encorajamento, orientações sobre perseverança e firmeza na hora da luta. O cristão é instado a jamais desistir do que é justo, conforme padrão esculpido por Deus em sua Palavra.

Importante, ressaltar, contudo, que tais palavras, comumente, remetem o leitor bíblico a ideia de nunca desistir do projeto, cuja arquitetura foi elaborada pelo próprio Senhor. Assim, não obstante o fiel vivenciar as mais brutais experiências no relacionamento com  seus semelhantes, ele deve, a rigor, olhar para o Cristo brutalizado e impiedosamente morto por gente que arvorava estar a serviço de Deus; quando, em verdade, a nota dominante de suas ações era o insano desejo de eliminar da arena pública Àquele que reverberava a todos, que o poder só serve, se for para servir ao próximo e que a justiça só é justa, quando o agente está disposto a negar o que é justo aos seus próprios olhos, a fim de que o justo, sob a ótica da Lei e ética divina  prevaleçam.

Na mesma sintonia dos assassinos imediatos do Cristo/Amor (cf. Lc. 23:1-49), transita, hoje, um gigantesco contingente de pessoas que, embora se identifiquem como cristãs, vivem imersas num mundo paralelo onde reina uma cultura radicalmente oposta à proclamada pelo Cristo/Transformador (cf. Mt. 5:43-49).

Diante dessa absurda atmosfera, na qual nos retroalimentamos de nossos ódios latejantes na alma, invejas mal disfarçadas, expressões de amores azedados, amizades circunstanciais e fortemente marcadas por conveniências, elogios que mascaram o figadal desejo da queda do outro.... Confesso, em lágrimas, que desisti.

Desisti porque ante essa pintura macabra, parece-me que o (des)caminho nos conduz, inapelavelmente, a uma encruzilhada, onde a opção do próximo passo é o ceticismo: duro, embrutecido, ressentido e que se auto exila em busca de não intensificar a enfermidade que estrangula a alma;  ou o cinismo: risonho, serelepe, mascarado, carregado de espiritualidade e amor, porém... cínico.

Desisti, pois meu corpo dói, meus olhos choram, minha alma murcha e meu espirito vive espantado ante o terror que liquida o próximo através das maledicências e da disseminação de fake news (uso o termo na escorreita acepção política que tomou) que se veiculam por meio de ações tão piedosas, tão etéreas, tão divinamente oraculares, tão santas... que o que resta, a nós míseros pecadores é, apenas, de joelhos, agradecer a tão grandiosa bondade da peçonha que enrijece os nervos e explode nosso coração. São venenosos, mas são tão santos, tão justos, tão democráticos, tão irrepreensíveis, tão...

Desisti, posto que não há um fiapo de mim que suporte esse mecanismo de morte que mata orando e recitando salmos de louvor à soberania divina, ou articulando palavras de Jesus sobre amor, enquanto o cadáver do morto que matamos desce solenemente ao túmulo: físico? Psicológico? Da má reputação, por conta da implacável maledicência de pessoas tão publicamente maravilhosas?

Desisti em razão de minha alma se encontrar enfastiada..., talvez à beira da loucura, ao ver tantos amigos, que em público rasgam elogios uns aos outros, enaltecem seus grandes feitos, aplaudem suas obras e se exprimem como a quintessência do amor e lealdade.... Todavia, nos bastidores, derramam o que realmente pensam uns dos outros; e, nesse derramar, tudo o que se afigura são ácidas críticas, rancores adormecidos, ódios enclausurados, invejas maquiadas....

Desisti, uma vez que, àqueles que insistem no caminho da bondade e correição vivem com a coragem minguada o suficiente a ponto de lhes impedir de alçar voz as alturas, como João Batista fez contra Herodes (cf. Mc. 6:17-19). Desse modo, com receio de perderem a cabeça, se calam e ficam à espera de um herói que à maneira da Geni, de Chico Buarque, os livre daquele repugnável comandante do pavoroso Zepelim, para em seguida ser apedrejada.

Desisti nauseado de discursos recheados de apelos democráticos; no entanto, os mesmos que discursam, alegando-se democratas, na menor oportunidade que têm de ascender ao poder escancaram a irreprimível vocação à ditadores mirins. Tais pessoas se sentem tão imperturbavelmente emponderadas, tão monocraticamente decisivas, tão despoticamente mandatárias e tão narcisivamente cheias de si; que, se pudessem, construiriam um trono e se postariam como deuses dum Olimpo, no qual Zeus, o mais poderoso da mitologia grega, seria reduzido ao pó e os demais súditos, pusilânimes, se prostrariam quietos, calados e atribuiriam sua postura, a uma certa “espiritualidade”, ou “ética olímpica” que não permite um farelo de questionamento, sob pena de o questionador, à maneira do pai de Zeus ser eliminado do mapa da existência: Moral? Física? Psicológica...?

Desisti diante da assombrosa constatação de que quanto mais religiosos somos; quanto mais convencidos de que somos detentores absolutos da verdadeira doutrina; quanto mais piedosos somos, aos nossos próprios olhos, nos tornamos proporcionalmente mais aguçados em nossa malignidade. Em frase atribuída a C.S. Lewis, o celebrado intelectual irlandês, convertido a Cristo, nos deparamos com essa pérola:

De todos os homens maus, homens maus religiosos são os piores”.

Desisti porque os acordos entre compadres valem mais que a lei, sobrepujam a verdade, são indiferentes à razão, escarnecem das instituições, espancam a inteligência e, no fim, sorriem graciosamente para o click das câmeras, porquanto, o importante é sair bem na foto, visto que o sentido da vida de tais compadres é fortalecer os laços, de modo que todos fiquem bem em seus postos de poder. A propósito, o espirito perspicaz de Rui Barbosa capturou muito bem a situação vivenciada em seu tempo, que calha perfeitamente aos nossos dias. Diz o grande mestre:

“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

Desisti porque percebo que na atmosfera respirada por todos nós, os entulhos da poluição, própria do velho homem inconverso, não permite que se lute com base na verdade objetiva, mas nos achismos a serviço das conveniências pessoais. O que vale não é o acordado, tampouco o que está escrito, menos ainda o que tacitamente foi convencionado; mas somente a palavra que estrangula, mesmo sendo, não raro, inverossímil. Com efeito, a luta se torna inócua, porquanto, no horizonte, apenas um mundo cinzento se desvela....

Decididamente não vale a pena lutar. Não por ser a luta apavorante, posto que a pior parte não é deixar de lutar, mais desistir do objeto que tanto se ama. Bob Marley condensa essa angustiante crise existencial quando, num poema, diz:

Difícil não é lutar por aquilo que se quer, e sim desistir daquilo que se mais ama. Eu desisti. Mas não pense que foi por não ter coragem de lutar, e sim por não ter mais condições de sofrer”.

Filosoficamente, no universo humano, não poucas vezes, o sofrimento se expressa como caldo de um niilismo viscoso, talvez mais denso, mais atrevido, mais bruto..., no fim, o caos será maior que o imaginado...    

No universo espiritual, no qual a Igreja, Corpo de Cristo, converge a Deus e, n’Ele, se veicula como suprema perfeição, a história alcança seu clímax e o eco carnal, da natureza adâmica, integralmente depravada, será de uma vez por todas silenciado.

Desistir, portanto, é ato intuitu personae. Constitui demanda pertencente ao eucêntrico” quando as opções de caminhos se revelam um breu existencial. Neste sentido, convém citar Clarice Lispector:     

“Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano”.

Num ambiente religiosamente cristão, mas cuja ética é diametralmente oposta ao ensino e práxis de Cristo, desistir, de fato, se torna uma “escolha sagrada”. É o momento em que o ser desumanizado e embrutecido faz o caminho de volta e se humaniza. Portanto, numa geografia cáustica, onde a alma vai, gradativamente, murchando até se perder, “Desistir é o verdadeiro instante humano”.

Paulo, por exemplo, no limiar da possibilidade da morte, perpetrada por seus algozes, destilou sua inarredável fé e esperança ao declarar: “Porquanto, para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro”. (Fp. 1:21). Morrer em Cristo constitui caminho de volta ao lar, portanto, lucro.

Mas afinal, deve-se desistir do quê? Desistir de entronizar o eu nascido de Adão, a fim de percorrer a carreira proposta pelo eu nascido em Cristo. Como o apóstolo Paulo, convém lutar tenazmente para escorraçar o eu que se contrafaz na imitação de Cristo, para que o Eu Crístico seja injetado na medula de nossa alma; e assim, poder dizer: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo é quem vivem em mim” (Gl 2:20).

Da agonizante experiência de Jesus, do Getsêmani (cf. Mt. 26:39), ao Gólgota (cf. Mt. 27:46), aflora a certeza de que existem momentos da vida que uma dor incontornável esmaga o peito, uma tristeza incontida e teimosa invade o coração e a monstruosa sensação de morte ruge aos ouvidos: “Minha alma está profundamente triste até a morte” (Mt. 26:38). Eis a fala de um homem, cujas palavras reverberavam a convulsionante dor em seu espírito. Importante ter em mente que Jesus, por óbvio, enfrentou esse momento com a convicção de quem cumpria uma missão. Foi para isso que veio até nós! (cf. Mc. 10:45).

Os seres humanos, no entanto, dotados unicamente de visão limitada da realidade podem flertar com uma realidade para além do alcance de seus olhos. Nas palavras do poeta, a pessoa neste estado  

 

“[...] é alguém que namora a desistência e tem sonhos eróticos com a morte. Todavia, deseja de forma desesperada ser amante perpétuo da vida”.

 

Os protagonistas da morte de Jesus romperam as fronteiras geográficas e temporais e circulam à vontade em nossos dias. Mudaram, evidentemente, o linguajar, a roupagem e o modus operandi; contudo, a motivação que os impulsiona a tamanha loucura, lhes permeia, como dantes, a tessitura da alma: eliminar tudo e todos que, eventualmente, lhes obste o caminho ao estrelato.

É possível que quem vive esse perverso drama, não seja capaz de mensurar os terríveis estragos a si e a outrem, pois a opção pelo ceticismo ou pelo cinismo ocorre tão sorrateiramente que não se toma ciência de que a consciência vive absorta no perigoso mar do flerte entre essas duas opções.

Definitivamente urge que, prostrados diante do Eterno, tenhamos coragem para desistir em dar o primeiro passo! Porém, caso a caminhada já esteja em curso, que o arrependimento seja a brisa a embalar nossas almas. Ante o exposto, desistir sempre! Vender a alma, jamais!

Que Cristo, a Vida, seja o parâmetro da vida de seus discípulos, a fim de que nenhum seja intoxicado pelo cinismo que cauteriza a mente, ou pelo ceticismo que embrutece o coração! 





Um comentário:

  1. Deus abençoe cada vez mais sua inteligência, eloquência e sabedoria meu Amigo e Pastor!

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