Por Inácio Pimentel
Em razão da pandemia
provocada pela COVID-19, uma atmosfera extremamente hostil, dada a proibição de
ajuntamento de pessoas, avançou sobre os arraiais do povo que se reúne para
cultuar uma entidade divina. No Brasil, o seguimento religioso, parece-me, mais
atingido tem sido o cristianismo. Celebração de cultos sofrem proibição,
templos têm sido sistematicamente fechados e clérigos têm sofrido
constrangimentos de não poderem sequer produzir material, como gravação de
mensagens, transmissão de cultos online etc., posto que agentes municipais e/ou
estaduais, em observância aos decretos dos executivos desses entes da Federação,
determinam que as atividades sejam imediatamente encerradas.
Em
Teresina, um pastor foi conduzido à central de flagrantes porque realizava culto
doméstico com sua família na residência pastoral contígua ao prédio destinado à
realização de cultos públicos. Por semelhante modo, em Santa Catarina, outro
pastor, também sofreu os rigores do Decreto regional que proíbe a realização de
culto e foi escoltado à delegacia onde se registrou boletim de ocorrência. Em
Poços de Caldas, mesmo com as portas do templo fechadas, Ministro da Igreja
Anglicana se achou obrigado a encerrar a transmissão do culto online que
celebrava. Afora estes, muitos outros casos de intolerância ao seguimento
religioso cristão, desrespeito a dignidade da pessoa humana e inobservância da
ordem jurídica vigente, notadamente, aos limites legiferantes de cada ente da Federação
encartados na Suprema Carta.
Ante
circunstâncias tão vexatórias alguns clérigos, escudados na Carta Magna
Brasileira, resolveram enfrentar os agentes estatais e continuaram com a
transmissão ao vivo. Outros decidiram desafiar o poder público e realizar suas
celebrações. Seguiu-se a partir daí inúmeras bravatas de governadores e até
ameaças destemperadas de um boquirroto
presidenciável que, aos moldes da democracia dos coronéis, dizia que padres e
pastores seriam presos se desobedecessem os decretos de confinamentos nas
cercanias cearense; que, à guisa da política coronelesca, vive o deslumbre de que o Ceará é feudo sob seu
comando.
O
presidente da República ao notar a balbúrdia reinante elaborou Decreto Presidencial nº 10.292 de 25 de
março de 2020, cujo objetivo foi alterar o Decreto
10.282 de 20 de março do corrente ano que regulamenta a Lei nº 13.979. O artigo 3º da referida Lei assevera, in verbis:
Para enfrentamento da emergência de
saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de
suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
No
bojo do artigo foram escandidos diversos incisos que assinalam as múltiplas
medidas a serem adotadas para enfretamento da pandemia; entre elas o isolamento e a quarentena.
No § 8º da Lei em tela o Decreto
determinou que as medidas de isolamento, quarentena e de outras restrições não
teriam o condão de alcançar o “exercício
e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais”. No § 9° do mesmo artigo é atribuída ao presidente da República
a competência para definir e elencar
as “atividades essenciais”.
Convém,
ainda, salientar que o Decreto 10.282 regulamentou
a Lei 13.979. No artigo 3º do
supracitado Decreto restou estabelecido que serviços públicos e atividades essenciais não seriam atigidos por restrições
em seu funcionamento. Eis o dispositivo:
As
medidas previstas na Lei
nº 13.979, de 2020, deverão
resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o
§ 1º.
Em seguida, no
§ 1º, o Decreto presidencial definiu que atividades essenciais são: a) as
indispensáveis; b) as inadiáveis.
Ambas devem ser consideradas sob o prisma da sobrevivência, saúde e segurança
das pessoas. Em outras palavras, atividades essenciais no enfrentamento da
patologia pandêmica são aquelas que visam garantir a sobrevivência, saúde e segurança de todos. Tais conceitos, sem
dúvidas, se amoldam perfeitamente ao figurino da dignidade da pessoa humana no
qual a religião se insere em virtude de seu importante papel desempenhado na vida
das pessoas ao favorecer saúde emocional e promover conforto espiritual em
tempos de crises. Com acerto, Murakami
e Campos, em artigo de revisão bibliográfica publicado pela Revista Brasileira
de Enfermagem da Universidade Estadual de Campinas, constataram que:
Existe
consenso entre cientistas sociais, filósofos e psicólogos sociais de que a
religião é um importante fator de significação e ordenação da vida, sendo
fundamental em momentos de maior impacto na vida das pessoas(1). Os
problemas espirituais, afetivos e sociais são demandas importantes na vida de
qualquer um, e a principal delas, é o problema de saúde, motivo pelo qual as
pessoas recorrem ao santuário e aos santos como se estes fossem uma espécie de
"pronto socorro" de atendimento integral(1). Desse modo,
ocorre a busca pelo alívio do sofrimento, por alguma significação ao desespero
que se instaura na vida de quem adoece. 1
Como foi demonstrado, a religião pode ajudar
sobremaneira o Estado ao ser referencial de conforto e alívio da gigantesca
carga emocional imposta por esta crise internacional. Basta o diálogo para que
a Constituição Brasileira se torne eficaz na colaboração entre poder público
estatal e o poder espiritual presente na religião.
Oportuno ressaltar que nos trinta e oito incisos
do art. 3º do Decreto 10.282 não se estampou a atividade religiosa como
essencial. Somente com o nascimento do Decreto
10.292 é que se inseriu o inciso
XXXIX e foi dado luz a “atividade
religiosa de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da
Saúde” como sendo essencial.
Não obstante a boa intenção do presidente, emergiram,
da caneta nervosa dos governadores e prefeitos, decretos em âmbito regional que
foram na contramão do decreto presidencial. Ademais, o judiciário também
acentuou o conflito ao ancorar pretensões que visaram anular a norma do chefe
do executivo nacional. Ante este grotesco conflito de normas indaga-se: os decretos estaduais e municipais que
proíbem o livre exercício de culto e impõem o fechamento de templos são
amparados pela legislação pátria e carregam consigo o gene da legalidade, ou
padecem de insurreição contra o direito posto?
Responder esta indagação
requer análise do direito posto, notadamente, numa escala piramidal, (de cima
para baixo) a fim de perceber, no universo das normas, àquelas que estão no
topo da hierarquia normativa relacionando-as com as que estão mais abaixo.
A Constituição federal de 1988 consagrou
no artigo 5º, inciso VI, portanto, no
âmago dos direitos e garantias fundamentais, “O livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias”.
Repare
que a liberdade para o exercício dos cultos ocorre tanto no que tange aos
cultos da multifacetada religiosidade brasileira, ou seja os cultos de todos os
matizes religiosos, desde os cultos realizados por religiões de matriz afro,
passando por religiões orientais e as diversas tradições do cristianismo, privam
da liberdade constitucional de serem realizados. Aqui, fala-se da liberdade de
cada um crer como desejar e de o Estado prover a todos os mesmos direitos, sem
perseguir uns, tampouco dar privilégios a outros.
Noutro
norte, devemos entender, também, que o dispositivo constitucional veicula a
liberdade ao exercício do culto, no sentido de que o Estado não pode interferir
em sua realização. A constituição veda à União e a qualquer de seus entes a
emissão de normas que venham embaraçar a plena liberdade que ela outorgou aos cultuantes.
A
liberdade constitucional de crença envolve o direito pessoal de se crer no que se
quiser, inclusive crer que não se deve crer em nenhum fenômeno transcendental,
ou divindade a qual se presta culto. No entanto, ao se converter a determinada
crença religiosa, o fiel passa a gozar de liberdade para expressar sua fé
através dos rituais, símbolos e reuniões litúrgicas, públicos ou não, consoante
suas escrituras e manuais sagrados. Sucede, pois, que a crença não resta
limitada à esfera intimista e pessoal, porquanto, abrange todos os aspectos que
veiculam a fé, inclusive as reuniões públicas dotadas do ethos da religião praticada. Neste sentido, a liberdade de culto é
a liberdade de se exteriorizar a fé presente na alma de quem cultua. Na
compreensão do celebrado constitucionalista José Afonso da Silva, (2010, p.
249) a liberdade religiosa é o pilar no qual a liberdade de culto ancora, posto
que
A religião não é apenas sentimento sagrado
puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples
adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua
característica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas
cerimônias, manifestações, reuniões. 2
Desse
modo, é lícito afirmar que ao emitir Norma proíbitiva ou cerceadora da plena
liberdade de realização de culto, o agente estatal desborda do parâmetro
constitucional estabelecido e fere violentamente o Estado Democrático de
Direito.
Além
disso, o texto constitucional encarta no artigo 24, incisos I a XVI, um rol de matérias, cuja competência
legislativa é concorrente. Cabe, pois, à União, Estados e Distrito Federal, o
poder para emitir leis reguladoras sobre os assuntos ali elencados. Contudo, os
parágrafos 1º ao 4º expõem com clareza induvidosa como deve ser desempenhada a
competência: a) União emite normas gerais; b) estados emitem normas
suplementares; c) na ausência de lei federal, Estados desempenham competência
plena; d) havendo superveniência de Lei Federal, normas estaduais perdem
eficácia.
Ora, a
meu sentir, é de solar clareza a supremacia, na ordem jurídica brasileira, da
Norma parida pela União, relativamente as normas que emergem dos outros entes
da Federação. Conquanto, não haja, obviamente, hierarquia entre os entes
estatais, resta assentado o critério da preponderância de interesse que assinala
a norma emergida da União como prevalente quando ocorrem conflitos em face de
normas concebidas por outros entes da Federação que visam disciplinar
interesses de abrangência nacional; o que, segundo julgo, está claramente em
jogo. Neste sentido, Gonet Branco (2011, p. 852) nos ensina:
Mesmo não havendo hierarquia entre os
entes que compõem a Federação, pode-se falar em hierarquia de interesses, em
que os mais amplos (da União) devem preferir aos mais restritos (dos Estados). 3
Em
verdade, estados e municípios não podem elaborar normas acerca de matéria já enfrentada
e decidida pela União. Ao adentrar na seara da União, quando esta já definiu os
contornos de abrangência de determinada norma, qualquer dos entes da Federação concede
vida à patologia da ilegalidade. A esse respeito o constitucionalista Gonet Branco
(2011, p. 853) aduz:
Não há
falar em preenchimento de lacuna, quando o que Estados ou Distrito Federal
fazem é transgredir lei federal já existente. 4
É
importante salientar que o legislador constitucional no artigo 19, inciso I da Magna Carta fixou a exata equidistância
entre Estado e Igreja, de modo que ambos não se relacionam por aliança, voz de
comando ou subserviência de um ao outro. Todavia, é preciso acentuar que ínsito
ao dispositivo legal supramencionado está a vedação ao Estado, de ações que
promovam embaraços as atividades da Igreja.
Resta,
pois, afigurado no texto constitucional que Estado e Igreja, malgrado, o
distanciamento necessário garantidor da laicidade daquele e da liberdade desta,
desenvolvem suas relações pelo princípio da colaboração, quando o que resta
assentado é o interesse público. Nesta esteira, o professor Gonet Branco (2011,
p. 359) leciona:
A laicidade do Estado não
significa, por certo, inimizade com a fé. Não impede a colaboração com
confissões religiosas, para o interesse público. 5
Vieira
e Regina (2019, p. 111, 112) alertam para o fato de que, lamentavelmente, não
poucos são os que confundem o conceito de laicidade do Estado imprimindo a ele
um significado, jamais pretendido pelo legislador constituinte:
[...]nos últimos dias tem se tornado
recorrente a proclamação, pelos mais diferentes setores da sociedade
brasileira, de que estamos sob a égide de um Estado Laico, e, muitas das vezes,
conceitualmente divorciado da realidade constitucional brasileira, na verdade o
conclamam e conceituam muito mais para agasalhar suas vontades egoísticas[...].
Estado laico não é Estado ateu. 6
Ora, Estado e religião, pela ótica
constitucional, são colaboradores mútuos, ambos, por vias diferentes labutam
pelo bem público, por conseguinte, ao invés impor sua vontade, o Estado deve
chamar a Igreja para o diálogo, a fim de juntos somarem esforços e debelar o
problema enfrentado.
Diante
dessas considerações resta afigurada a inconstitucionalidade dos decretos
estaduais e municipais que proíbem a realização de cultos. Seja por que ataca
frontalmente a liberdade religiosa e o livre exercício de culto, conforme art. 5º, VI; seja por que avilta o Decreto presidencial 10.292/2020 que
regulamenta a Lei Federal 13.979;
visto que deu nova redação ao art. 3º, e
incorporou o inciso XXXIX, no Decreto 10.282 que consignou as “atividades religiosas de qualquer
natureza, obedecidas as determinações do Ministérios da Saúde”, como
atividades essenciais que devem ser resguardadas em seu exercício e
funcionamento. Com efeito, a Lei Federal preencheu, através do inciso XXXIX, art. 3º do decreto
Presidencial regulamentador da Lei 13.979, a lacuna pertinente as atividades
religiosas como essenciais. Destarte, as medidas estaduais e municipais não são
dotadas de aptidão para regular a atuação da Igreja, ou outra expressão
religiosa neste particular, porquanto, Lei Federal e a Constituição Brasileira já
se encarregaram desse mister.
Em face ao exposto, como
os cristãos devem agir? Devem partir para o confronto em açodada desobediência
civil, ou devem se resignar e como cordeiros levados ao matadouro, emudecerem
diante da intolerância e ilegalidade perpetradas pelos agentes estatais?
Bem,
julgo primeiramente que é necessário à liderança da Igreja, profunda
consciência do amparo fornecido pela ordem constitucional brasileira. Somente
dotada deste conhecimento, a igreja pode se colocar como protagonista no
diálogo com o Estado e assim, não permitir que em nome da segurança, o direito
à liberdade sucumba.
Ao se
arvorar detentor de poder para impor fechamento de templos, prender clérigos,
proibir cultos domésticos, encerrar transmissões de culto online e esbravejar
ameaças contra supostos desobedientes, o Estado desborda de sua competência,
afronta a Constituição e assume postura da nefasta doutrina fascista. Aliás, é
sempre aconselhável ficar de prontidão, a fim de que, em nome da democracia,
espertalhões de turno não nos imponham o terror.
Em
segundo lugar é imperioso relembrar que o cristão se move pelo sacrificial amor
do Senhor Jesus Cristo (cf. Jo. 3:16; 15:13; Rm. 5:8), segue-se, pois que esse
amor é traduzido mediante a disponibilidade para servir ao próximo (cf. Mt.
20:28; Lc. 10:25-37; 1Jo. 3:16). De fato, a experiência do amor divino na alma
cristã galvaniza as ações do cristão em favor do próximo. Assim sendo, a não
realização do culto coletivo, provido de todos os elementos litúrgicos
presenciais, deve ser a opção seguida pela Igreja, porquanto, o amor ao próximo
é componente inafastável do culto a Jesus Cristo. Igreja que se nega a fechar
seus templos diante de um perigo real,
nega o amor de Cristo; porém, igreja que se cala diante da iniquidade e
mentiras de governantes encharcados de intenções perversas, nega o compromisso evangelical de denunciar as injustiças
efetuadas por aqueles que reverberam o discurso democrático, mas, qual rêmoras,
sugam as energias de quem lhes fornece corpo para seguirem suas jornadas de
pavor e destruição. MARANATA!
OBRAS
CONSULTADAS:
1.
Murakami, R.
e Campos, C. J. Gomes. (Rev. Bras. Enferm. Vol 65 nº 2
Brasília Mar/Apr. 2012). Encontrado em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672012000200024
2.
Silva, José
Afonso. Curso
de Direito Constitucional Positivo. 34º ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
3.
Gonet Branco,
Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
4.
Ibid., p.
853.
5.
Ibid., p.
359.
6.
Vieira,
Thiago Rafael e Regina, Jean Marques. Direito Religioso, questões Práticas e Teóricas. 2ª
ed. Porto Alegre – RS: Concórdia, 2019.
Um excelente esclarecedor artigo!
ResponderExcluirExtenso trabalho, equiparado ao seu valor informativo esclarecedor.
ResponderExcluirGrato Pr. Inácio
Parabéns Pr. Inácio, excelente reflexão!
ResponderExcluirNorma Suely
ResponderExcluirParabéns Pr. Inácio, excelente reflexão!
ARTIGO muito esclarecedor, PR. Inácio.
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