quarta-feira, 8 de abril de 2020

LIBERDADE RELIGIOSA, FECHAMENTO DE TEMPLOS E O CONFLITO DE NORMAS.



Por Inácio Pimentel


Em razão da pandemia provocada pela COVID-19, uma atmosfera extremamente hostil, dada a proibição de ajuntamento de pessoas, avançou sobre os arraiais do povo que se reúne para cultuar uma entidade divina. No Brasil, o seguimento religioso, parece-me, mais atingido tem sido o cristianismo. Celebração de cultos sofrem proibição, templos têm sido sistematicamente fechados e clérigos têm sofrido constrangimentos de não poderem sequer produzir material, como gravação de mensagens, transmissão de cultos online etc., posto que agentes municipais e/ou estaduais, em observância aos decretos dos executivos desses entes da Federação, determinam que as atividades sejam imediatamente encerradas.
Em Teresina, um pastor foi conduzido à central de flagrantes porque realizava culto doméstico com sua família na residência pastoral contígua ao prédio destinado à realização de cultos públicos. Por semelhante modo, em Santa Catarina, outro pastor, também sofreu os rigores do Decreto regional que proíbe a realização de culto e foi escoltado à delegacia onde se registrou boletim de ocorrência. Em Poços de Caldas, mesmo com as portas do templo fechadas, Ministro da Igreja Anglicana se achou obrigado a encerrar a transmissão do culto online que celebrava. Afora estes, muitos outros casos de intolerância ao seguimento religioso cristão, desrespeito a dignidade da pessoa humana e inobservância da ordem jurídica vigente, notadamente, aos limites legiferantes de cada ente da Federação encartados na Suprema Carta.    
Ante circunstâncias tão vexatórias alguns clérigos, escudados na Carta Magna Brasileira, resolveram enfrentar os agentes estatais e continuaram com a transmissão ao vivo. Outros decidiram desafiar o poder público e realizar suas celebrações. Seguiu-se a partir daí inúmeras bravatas de governadores e até ameaças destemperadas  de um boquirroto presidenciável que, aos moldes da democracia dos coronéis, dizia que padres e pastores seriam presos se desobedecessem os decretos de confinamentos nas cercanias cearense; que, à guisa da política coronelesca, vive o deslumbre de que o Ceará é feudo sob seu comando.
O presidente da República ao notar a balbúrdia reinante elaborou Decreto Presidencial nº 10.292 de 25 de março de 2020, cujo objetivo foi alterar o Decreto 10.282 de 20 de março do corrente ano que regulamenta a Lei nº 13.979. O artigo 3º da referida Lei assevera, in verbis:
Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
No bojo do artigo foram escandidos diversos incisos que assinalam as múltiplas medidas a serem adotadas para enfretamento da pandemia; entre elas o isolamento e a quarentena.
No § 8º da Lei em tela o Decreto determinou que as medidas de isolamento, quarentena e de outras restrições não teriam o condão de alcançar o “exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais”. No § 9° do mesmo artigo é atribuída ao presidente da República a competência para definir e elencar as “atividades essenciais”.
Convém, ainda, salientar que o Decreto 10.282 regulamentou a Lei 13.979. No artigo 3º do supracitado Decreto restou estabelecido que serviços públicos e atividades essenciais não seriam atigidos por restrições em seu funcionamento. Eis o dispositivo:
As medidas previstas na Lei nº 13.979, de 2020, deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 1º.
Em seguida, no § 1º, o Decreto presidencial definiu que atividades essenciais são: a) as indispensáveis; b) as inadiáveis. Ambas devem ser consideradas sob o prisma da sobrevivência, saúde e segurança das pessoas. Em outras palavras, atividades essenciais no enfrentamento da patologia pandêmica são aquelas que visam garantir a sobrevivência, saúde e segurança de todos. Tais conceitos, sem dúvidas, se amoldam perfeitamente ao figurino da dignidade da pessoa humana no qual a religião se insere em virtude de seu importante papel desempenhado na vida das pessoas ao favorecer saúde emocional e promover conforto espiritual em tempos de crises. Com acerto, Murakami e Campos, em artigo de revisão bibliográfica publicado pela Revista Brasileira de Enfermagem da Universidade Estadual de Campinas, constataram que:
Existe consenso entre cientistas sociais, filósofos e psicólogos sociais de que a religião é um importante fator de significação e ordenação da vida, sendo fundamental em momentos de maior impacto na vida das pessoas(1). Os problemas espirituais, afetivos e sociais são demandas importantes na vida de qualquer um, e a principal delas, é o problema de saúde, motivo pelo qual as pessoas recorrem ao santuário e aos santos como se estes fossem uma espécie de "pronto socorro" de atendimento integral(1). Desse modo, ocorre a busca pelo alívio do sofrimento, por alguma significação ao desespero que se instaura na vida de quem adoece. 1
Como foi demonstrado, a religião pode ajudar sobremaneira o Estado ao ser referencial de conforto e alívio da gigantesca carga emocional imposta por esta crise internacional. Basta o diálogo para que a Constituição Brasileira se torne eficaz na colaboração entre poder público estatal e o poder espiritual presente na religião.
Oportuno ressaltar que nos trinta e oito incisos do art. 3º do Decreto 10.282 não se estampou a atividade religiosa como essencial. Somente com o nascimento do Decreto 10.292 é que se inseriu o inciso XXXIX e foi dado luz a “atividade religiosa de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde” como sendo essencial.
Não obstante a boa intenção do presidente, emergiram, da caneta nervosa dos governadores e prefeitos, decretos em âmbito regional que foram na contramão do decreto presidencial. Ademais, o judiciário também acentuou o conflito ao ancorar pretensões que visaram anular a norma do chefe do executivo nacional. Ante este grotesco conflito de normas indaga-se: os decretos estaduais e municipais que proíbem o livre exercício de culto e impõem o fechamento de templos são amparados pela legislação pátria e carregam consigo o gene da legalidade, ou padecem de insurreição contra o direito posto?
Responder esta indagação requer análise do direito posto, notadamente, numa escala piramidal, (de cima para baixo) a fim de perceber, no universo das normas, àquelas que estão no topo da hierarquia normativa relacionando-as com as que estão mais abaixo.
A Constituição federal de 1988 consagrou no artigo 5º, inciso VI, portanto, no âmago dos direitos e garantias fundamentais, O livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
Repare que a liberdade para o exercício dos cultos ocorre tanto no que tange aos cultos da multifacetada religiosidade brasileira, ou seja os cultos de todos os matizes religiosos, desde os cultos realizados por religiões de matriz afro, passando por religiões orientais e as diversas tradições do cristianismo, privam da liberdade constitucional de serem realizados. Aqui, fala-se da liberdade de cada um crer como desejar e de o Estado prover a todos os mesmos direitos, sem perseguir uns, tampouco dar privilégios a outros.  
Noutro norte, devemos entender, também, que o dispositivo constitucional veicula a liberdade ao exercício do culto, no sentido de que o Estado não pode interferir em sua realização. A constituição veda à União e a qualquer de seus entes a emissão de normas que venham embaraçar a plena liberdade que ela outorgou aos cultuantes.
A liberdade constitucional de crença envolve o direito pessoal de se crer no que se quiser, inclusive crer que não se deve crer em nenhum fenômeno transcendental, ou divindade a qual se presta culto. No entanto, ao se converter a determinada crença religiosa, o fiel passa a gozar de liberdade para expressar sua fé através dos rituais, símbolos e reuniões litúrgicas, públicos ou não, consoante suas escrituras e manuais sagrados. Sucede, pois, que a crença não resta limitada à esfera intimista e pessoal, porquanto, abrange todos os aspectos que veiculam a fé, inclusive as reuniões públicas dotadas do ethos da religião praticada. Neste sentido, a liberdade de culto é a liberdade de se exteriorizar a fé presente na alma de quem cultua. Na compreensão do celebrado constitucionalista José Afonso da Silva, (2010, p. 249) a liberdade religiosa é o pilar no qual a liberdade de culto ancora, posto que
A religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, manifestações, reuniões. 2
Desse modo, é lícito afirmar que ao emitir Norma proíbitiva ou cerceadora da plena liberdade de realização de culto, o agente estatal desborda do parâmetro constitucional estabelecido e fere violentamente o Estado Democrático de Direito.    
Além disso, o texto constitucional encarta no artigo 24, incisos I a XVI, um rol de matérias, cuja competência legislativa é concorrente. Cabe, pois, à União, Estados e Distrito Federal, o poder para emitir leis reguladoras sobre os assuntos ali elencados. Contudo, os parágrafos 1º ao 4º expõem com clareza induvidosa como deve ser desempenhada a competência: a) União emite normas gerais; b) estados emitem normas suplementares; c) na ausência de lei federal, Estados desempenham competência plena; d) havendo superveniência de Lei Federal, normas estaduais perdem eficácia.
Ora, a meu sentir, é de solar clareza a supremacia, na ordem jurídica brasileira, da Norma parida pela União, relativamente as normas que emergem dos outros entes da Federação. Conquanto, não haja, obviamente, hierarquia entre os entes estatais, resta assentado o critério da preponderância de interesse que assinala a norma emergida da União como prevalente quando ocorrem conflitos em face de normas concebidas por outros entes da Federação que visam disciplinar interesses de abrangência nacional; o que, segundo julgo, está claramente em jogo. Neste sentido, Gonet Branco (2011, p. 852) nos ensina:
Mesmo não havendo hierarquia entre os entes que compõem a Federação, pode-se falar em hierarquia de interesses, em que os mais amplos (da União) devem preferir aos mais restritos (dos Estados). 3
Em verdade, estados e municípios não podem elaborar normas acerca de matéria já enfrentada e decidida pela União. Ao adentrar na seara da União, quando esta já definiu os contornos de abrangência de determinada norma, qualquer dos entes da Federação concede vida à patologia da ilegalidade. A esse respeito o constitucionalista Gonet Branco (2011, p. 853) aduz:
Não há falar em preenchimento de lacuna, quando o que Estados ou Distrito Federal fazem é transgredir lei federal já existente. 4
É importante salientar que o legislador constitucional no artigo 19, inciso I da Magna Carta fixou a exata equidistância entre Estado e Igreja, de modo que ambos não se relacionam por aliança, voz de comando ou subserviência de um ao outro. Todavia, é preciso acentuar que ínsito ao dispositivo legal supramencionado está a vedação ao Estado, de ações que promovam embaraços as atividades da Igreja.
Resta, pois, afigurado no texto constitucional que Estado e Igreja, malgrado, o distanciamento necessário garantidor da laicidade daquele e da liberdade desta, desenvolvem suas relações pelo princípio da colaboração, quando o que resta assentado é o interesse público. Nesta esteira, o professor Gonet Branco (2011, p. 359) leciona:
A laicidade do Estado não significa, por certo, inimizade com a fé. Não impede a colaboração com confissões religiosas, para o interesse público. 5
Vieira e Regina (2019, p. 111, 112) alertam para o fato de que, lamentavelmente, não poucos são os que confundem o conceito de laicidade do Estado imprimindo a ele um significado, jamais pretendido pelo legislador constituinte:
[...]nos últimos dias tem se tornado recorrente a proclamação, pelos mais diferentes setores da sociedade brasileira, de que estamos sob a égide de um Estado Laico, e, muitas das vezes, conceitualmente divorciado da realidade constitucional brasileira, na verdade o conclamam e conceituam muito mais para agasalhar suas vontades egoísticas[...]. Estado laico não é Estado ateu. 6
 Ora, Estado e religião, pela ótica constitucional, são colaboradores mútuos, ambos, por vias diferentes labutam pelo bem público, por conseguinte, ao invés impor sua vontade, o Estado deve chamar a Igreja para o diálogo, a fim de juntos somarem esforços e debelar o problema enfrentado.
Diante dessas considerações resta afigurada a inconstitucionalidade dos decretos estaduais e municipais que proíbem a realização de cultos. Seja por que ataca frontalmente a liberdade religiosa e o livre exercício de culto, conforme art. 5º, VI; seja por que avilta o Decreto presidencial 10.292/2020 que regulamenta a Lei Federal 13.979; visto que deu nova redação ao art. 3º, e incorporou o inciso XXXIX, no Decreto 10.282 que consignou as “atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministérios da Saúde”, como atividades essenciais que devem ser resguardadas em seu exercício e funcionamento. Com efeito, a Lei Federal preencheu, através do inciso XXXIX, art. 3º do decreto Presidencial regulamentador da Lei 13.979, a lacuna pertinente as atividades religiosas como essenciais. Destarte, as medidas estaduais e municipais não são dotadas de aptidão para regular a atuação da Igreja, ou outra expressão religiosa neste particular, porquanto, Lei Federal e a Constituição Brasileira já se encarregaram desse mister.
Em face ao exposto, como os cristãos devem agir? Devem partir para o confronto em açodada desobediência civil, ou devem se resignar e como cordeiros levados ao matadouro, emudecerem diante da intolerância e ilegalidade perpetradas pelos agentes estatais?
Bem, julgo primeiramente que é necessário à liderança da Igreja, profunda consciência do amparo fornecido pela ordem constitucional brasileira. Somente dotada deste conhecimento, a igreja pode se colocar como protagonista no diálogo com o Estado e assim, não permitir que em nome da segurança, o direito à liberdade sucumba.
Ao se arvorar detentor de poder para impor fechamento de templos, prender clérigos, proibir cultos domésticos, encerrar transmissões de culto online e esbravejar ameaças contra supostos desobedientes, o Estado desborda de sua competência, afronta a Constituição e assume postura da nefasta doutrina fascista. Aliás, é sempre aconselhável ficar de prontidão, a fim de que, em nome da democracia, espertalhões de turno não nos imponham o terror. 
Em segundo lugar é imperioso relembrar que o cristão se move pelo sacrificial amor do Senhor Jesus Cristo (cf. Jo. 3:16; 15:13; Rm. 5:8), segue-se, pois que esse amor é traduzido mediante a disponibilidade para servir ao próximo (cf. Mt. 20:28; Lc. 10:25-37; 1Jo. 3:16). De fato, a experiência do amor divino na alma cristã galvaniza as ações do cristão em favor do próximo. Assim sendo, a não realização do culto coletivo, provido de todos os elementos litúrgicos presenciais, deve ser a opção seguida pela Igreja, porquanto, o amor ao próximo é componente inafastável do culto a Jesus Cristo. Igreja que se nega a fechar seus templos diante de um perigo real, nega o amor de Cristo; porém, igreja que se cala diante da iniquidade e mentiras de governantes encharcados de intenções perversas, nega o compromisso evangelical de denunciar as injustiças efetuadas por aqueles que reverberam o discurso democrático, mas, qual rêmoras, sugam as energias de quem lhes fornece corpo para seguirem suas jornadas de pavor e destruição. MARANATA!

OBRAS CONSULTADAS:
1.   Murakami, R. e Campos, C. J. Gomes. (Rev. Bras. Enferm. Vol 65 nº 2 Brasília Mar/Apr. 2012). Encontrado em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672012000200024

2.   Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34º ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

3.   Gonet Branco, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

4.   Ibid., p. 853.

5.   Ibid., p. 359.

6.   Vieira, Thiago Rafael e Regina, Jean Marques. Direito Religioso, questões Práticas e Teóricas. 2ª ed. Porto Alegre – RS: Concórdia, 2019.


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