quarta-feira, 22 de junho de 2011

A HERMENÊUTICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL


Rev. Inácio Pinto
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de ampliar o conceito de família, consoante o exarado nos artigos 226 da Constituição Federal e 1723 do Código Civil Brasileiro, rompe com mais de 500 anos de tradição cristã, e, por que não dizer do jusnaturalismo em nossa república.
Nada, contudo, deve obstar a decisão da Suprema Corte desta terra multifacetada, Brasil. Afinal, os Ministros que compõem o mais conspícuo tribunal brasileiro têm como função precípua a defesa e guarda de nossa Constituição. Espera-se, por conseguinte, que seus ministros, dotados de grande saber jurídico e vasta erudição sejam vetores de interpretação consubstanciada em hermenêutica sadia e não em contorcionismo ‘intelectualista’ que visa dar ar de legalidade a realidade que não encontra amparo constitucional.
O STF não é isento a erros. Pode errar! Erra quem pensa o contrário. Para evitar-se erros crassos, necessário é que suas decisões sejam lastreadas por sólida base hermenêutica. Ou seja, nenhuma pressão de natureza religiosa ou ideológica promovida por seguimentos organizados da sociedade deve interferir nas decisões de nossa Corte Maior.
         Convém ressaltar que a hermenêutica jurídica oferece ao aplicador da lei múltiplas formas de aplicá-la aos casos concretos por ela tipificados. Ao surgir determinado fenômeno social que escapou da previsão do legislador far-se-á necessário a integração do direito pelo mecanismo da analogia. Todavia, a fim de resguardar a segurança jurídica o magistrado deve abster-se de decidir contra legem (contrário a lei).

Pois, a nenhum juiz, seja de primeira instância ou mesmo à plenária dos ilustres magistrados do Supremo Tribunal Federal é concedida licença para julgar consoante sua própria convicção, a despeito da lei; sobretudo quando não foram cessados os recursos hermenêuticos tradicionais, e, tampouco há lacuna no corpo do Ordenamento Jurídico.
Neste caso, o que deve prevalecer é a lei, seu espírito; escorraçadas daí toda invencionice ‘intelctualista’ que visa legitimar o que a lei jamais pretendeu.
Em minha visão o STF agiu contra legem. Não estou a discutir se o conceito subjetivo de justiça dos senhores ministros é certo ou errado, estou a apontar que a interpretação dada ao dispositivo constitucional para assegurar aos homossexuais que vivem em união estável o status de família laborou em erro grosseiro, porquanto, introduziu no texto constitucional uma espécie de ‘família’ (a decorrente de união estável entre homossexuais) que o texto não comporta!  
O ministro Ayres Britto ao analisar o art. 226 da CF vaticina que o caput do referido artigo refere-se a

“família em seu sentido coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas.”

Vejamos o que diz o artigo 226 da CF: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” Notemos alguns detalhes deste artigo: a) o Estado reconhece uma entidade que conta com sua proteção identificada como ‘família’; b) o Estado reconhece que a família é a base da sociedade; c) até aqui não há definição que tipo de entidade familiar é esta; d) contudo, pela cultura brasileira e pelos registros da discussão dos constituintes conclui-se que os legisladores não tinham em mente outra família senão a formada por homem e mulher.
O ministro Ayres Britto tem razão ao entender que família neste texto está posta “em seu sentido coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico”, porém se equivoca ao afirmar que pouco importa se esta família é formada por casais heterossexuais ou homossexuais. Porquanto, como aventado acima, os anais da constituinte de 1988 comprovam que os legisladores, não obstante, vislumbrassem a família como núcleo doméstico, jamais cogitaram a possibilidade desta, ser formada pela união ‘marital’ entre pessoas do mesmo sexo. Neste sentido as palavras do ministro Lewandowski são elucidativas:

“Verifico, ademais, que, nas discussões travadas na Assembléia Constituinte a questão do gênero na união estável foi amplamente debatida, quando se votou o dispositivo em tela, concluindo-se, de modo insofismável, que a união estável abrange, única e exclusivamente, pessoas de sexo distinto”.

Com efeito, somente via hermenêutica eivada de vícios pode-se chegar a conclusão que o ministro Ayres Britto chegou. É a prática da eixegese (colocar dentro do texto o que desejamos que ele diga) e não exegese (ouvir o texto e dele extrair o que realmente tenciona).
No § 3º os congressistas assinalaram “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Perceba que agora o legislador deixa absolutamente claro que ao falar de família sua mente está voltada para uma entidade composta de homem e mulher. Aqui, se aplica o velho brocardo latino: in claris cessat interpretatio (sendo a lei clara, cessa-se a interpretação). Afirmar que a união estável entre o homem e a mulher é somente exemplificativa, posto que o legislador deixou de fora o vocábulo ‘apenas’, é brecha que se busca na letra da lei quando se perdeu o ânimo de perscrutar seu espírito.
A novidade do § 3º é a concessão de status de família ao concubinato, vez que constituições anteriores reconheciam como família somente aquelas decorrentes do casamento (entre homem e mulher, claro), já esta de 1988 elastece mais o conceito. Porém ressalta que este tipo de família é apenas circunstancial e não a ideal, pois “a lei deve facilitar sua conversão em casamento”.
O § 4º reconhece também como entidade familiar o que a doutrina jurídica consagrou como família monoparental, a saber, a formada por apenas um dos cônjuges e seus descendentes.
Em suma, constata-se no texto constitucional, três tipos de família: a) A decorrente de casamento; b) a resultante de união estável; c) a que, decorrente de separação ou falecimento de um dos cônjuges, permanece unida em torno de quem ficou.
Ao ler-se os votos dos ministros do STF nota-se que eles compreenderam esta realidade. O ministro Ricardo Lewandowski declara,

“Assim, penso, não há como enquadrar a união entre pessoas do mesmo sexo em nenhuma dessas espécies de família, quer naquela constituída pelo casamento, quer na união estável, estabelecida a partir da relação entre um homem e uma mulher, quer, ainda, na monoparental.”

 O problema ocorre, porque entendem que o tipo de famílias mencionado é somente exemplificativo e não taxativo. Ou seja, na visão do STF o texto constitucional fornece apenas alguns exemplos de família, não veda, portanto, outros que venham aparecer. Assim se expressa o ministro Lewandowski:

“Embora o texto constitucional tenha sido taxativo ao dispor que a união estável é aquela formada por pessoas de sexos diversos, tal ressalva não significa que a união homoafetiva pública, continuada e duradoura não possa ser identificada como entidade familiar apta a merecer proteção estatal, diante do rol meramente exemplificativo do art. 226[...]”

Ora, isso não passa de ficção. Basta investigar as discussões havidas em torno do tema, por ocasião da Assembléia Nacional Constituinte e verificar-se-á que o objetivo dos legisladores foi reconhecer como espécies de famílias as dispostas no texto e não outras que intérpretes da lei tentam encontrar, entretanto, a moralidade social representada nos constituintes rechaça.
Cumpre advertir que se o legislador guardou silêncio é de bom alvitre investigar as razões, pois neste caso, ubi Lex voluit dixit, ubi noluit tacuit (quando a lei quis determinou; quando não quis guardou silêncio), este brocardo é perfeitamente aplicável.
Em busca de corroboração para a decisão que tomaram os ministros recorreram aos artigos. 1º ao 5º da CF que apontam a dignidade da pessoa humana, a promoção do bem de todos sem nenhuma espécie de preconceito, e a igualdade de todos perante a lei, como princípios fundamentais da relação Estado/cidadãos. Assim, concluíram eles que, se todos devem gozar de plena liberdade, viver dignamente, ter igualdade perante a lei, e, ninguém deve sofrer qualquer tipo de preconceito; negar aos homossexuais o direito de ter suas uniões reconhecida pelo Estado, deixando-os na marginalidade jurídica é institucionalizar a discriminação.
Destarte, segundo o STF tanto o art. 226 da CF como o art. 1723 do C.C. devem ser interpretados pela chave hermenêutica dos princípios encimados. Neste diapasão a ministra Carmem Lúcia assevera: “Não seria pensável que se assegurasse constitucionalmente a liberdade e, por regra contraditória, no mesmo texto se tolhesse essa mesma liberdade [...]”
A propósito indaga-se: que tipo de liberdade é esta garantida pela Lei Maior? Seria porventura um tipo de liberdade que concede ao sujeito o direito de fazer o que bem deseja? Ou seria uma liberdade cujos contornos viriam delimitados pelo direito, moral e religião? Como bem sabidos, instrumentos de controle social!
A própria Carta Magna dá resposta a tais indagações: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II).
A liberdade só pode ser plenamente vivenciada com responsabilidade. A lei estabelece as diretrizes de nossas ações. Sabemos o que podemos ou não fazer, conforme os limites legal. Observar este fato, num Estado Democrático de Direito, é decerto, viver com responsabilidade a liberdade que se tem.
No caso das pessoas que se sentem atraídas por outras do mesmo sexo, a lei não as proíbe de manifestarem plenamente esta inclinação. Creio que o homossexual deve ser plenamente livre para manifestar seu eros a quem quer que seja, e, a quantos quer que sejam. Concordo que como opção pessoal, podem constituir sociedades e viverem juntos ‘maritalmente’. Admito que todos os direitos dispostos em nosso ordenamento jurídico, sobretudo, os que versam sobre a o respeito, a liberdade, igualdade, honra e dignidade da pessoa humana, devem ser obrigatoriamente dispensados aos homossexuais enquanto cidadãos.
Contudo, reivindicar que a união estável entre homossexuais seja autenticada pelo Estado como entidade familiar é ir além do que a lei confere. Afirmar que as famílias elencadas no texto constitucional são apenas exemplificativas é subterfúgio travestido de intelectualidade.
Sucede que, segurança jurídica é o antídoto que protege a sociedade de desvarios dos que detém o poder. E, segurança jurídica é ter a garantia de que o entendimento da Constituição ou de Leis Ordinárias não serão pervertidos para satisfazer os interesses de ninguém!
Julgo, portanto, que segurança jurídica não se ancora nas vicissitudes histórico/culturais, menos ainda no foro íntimo de cada aplicador da lei; mas em hermenêutica que considera o consenso social que levou o legislador a elaborar a norma jurídica, desta e não daquela maneira, com este e não com aquele alcance, etc. Ou seja: na occasio legis (contexto em que a lei foi concebida); na mens legislatores (aquilo que o legislador quis dizer) que a rigor deve ser a captação do sentimento social positivado pelo aparelho estatal. 
O STF errou ao consagrar a união entre homossexuais como entidade familiar por afastar-se radicalmente dos pressupostos fundamentais da boa interpretação e entregar-se a uma ‘nova hermenêutica’ de submissão ideológica, batizada de “interpretação conforme a Constituição”.
Meu receio é que este fato vire moda. E aí, ao invés de termos a consolidação do Estado Democrático de Direito, decorrente de respeito à Constituição passemos a um Estado de Ditadura Judicial de viés ideológico, cristalizado na subjetividade interpretativa dos ministros do STF.


Rev. Inácio Pimentel Pinto


Inácio Pìnto é Presidente da AICEB Nordeste (Aliança das Igrejas Cristãs Evangélicas do Brasil - Região Nordeste

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