NOSSO GOVERNO
E Ele é a cabeça do corpo da igreja…(Cl 1:18)
INTRODUÇÃO
Desde o princípio, a Bíblia apresenta Deus
como alguém extremamente comprometido com a organização daquilo faz. A obra da
criação assinala o meticuloso cuidado divino no fazimento das coisas primeiras;
a origem e desenvolvimento de seu povo apontam o cuidado do Senhor na
trajetória estabelecida por Seu projeto eterno; o plano redentor culminado em
Cristo e, efetivamente, aplicado à Igreja cristaliza o desdobramento da missão
redentora desenhada na eternidade; finalmente, a futura inauguração do novo céu
e da nova terra, quando tudo receberá o selo de qualidade da glória original,
explicita o controle e soberano governo do Altíssimo na ordo salutis.
A Igreja, como protagonista da História
Escrita por Deus, representa na terra a organização, não apenas presente nas
ações do Senhor Deus, mas requerida por Ele de seu povo (cf. Mt. 18:15-20; 1Co.
11-14; Ef. 4:11-16; 1Tm. 5:17; Tt. 1:5-6).
A igreja, portanto, não é um amontoado de
pessoas desordenadas, sem liderança, sem governo, a seguir, cada uma, o caminho
que bem lhe parecer. Paulo esclarece: “Porquanto Deus não é Deus de desordem,
mas sim de paz. Como em todas as assembleias dos santos” (1Co. 14:33 – KJA).
No que tange a organização formal da igreja
que evidenciaria uma espécie de governo tal como hoje concebemos, Robert Culver
salienta a ausência dessa particularidade na igreja do primeiro século.
Contudo, afirma que em razão de algumas práticas vivenciadas por aqueles irmãos
é lícito supor que havia alguma organização entre eles. [1]
Neste sentido, o povo de Deus se organizou,
inicialmente, em torno dos apóstolos (cf. At. 1:15-26; 4:32-35; 6:1-7; 15:6-35;
Gl. 2:9; Tt. 1:5-6) que foram sucedidos por outros discípulos; e, na proporção
do crescimento da igreja e sua consequente disseminação pelo mundo, se tornou imperioso
a criação de certos mecanismos de administração que fornecessem respostas as
demandas de milhares de cristãos espalhados mundo afora. Assim sendo, de uma
organização simples, na qual a ênfase recaía sobre relacionamento com Deus e
com o próximo por meio da adoração e partilha, a igreja, a partir do segundo
século, experimentou transformações tão radicais a ponto de fazê-la descambar
num governo complexo, enrijecido, profundamente carregado de pompa e com uma
ordem hierárquica jamais pretendida pelos apóstolos.
Com o advento da Reforma Protestante, novos
grupos de cristãos surgiram. Em busca da simplicidade do Evangelho anunciado
por Jesus e ensinado pelos apóstolos, os reformadores romperam com tudo
considerado em desacordo com a sã doutrina; inclusive com a estrutura pesada da
hierarquia clerical que confundia – ainda confunde – clero com a própria igreja
e seu líder maior, o bispo de Roma, com o representante direto de Cristo na
terra.
Ocorre que, a despeito das convergências
doutrinárias, havia entre os reformadores diferenças de visões quanto a
detalhes. No que pertine ao modo como a igreja seria administrada surgiram
ênfases diferentes, sucedendo daí novos modelos de governo eclesiástico.
Vejamos alguns:
ESPÉCIES DE GOVERNO ADOTADO POR
IGREJAS EM GERAL
Governo Episcopal:
Enfatiza a autoridade do bispo como
governante de um grupo de igrejas locais. Anglicanos, metodistas, luteranos, no
contexto protestante, são representantes, com maior ou menor complexidade,
desse tipo de governo. Convém ressaltar que muitas denominações pentecostais e
neopentecostais, embora nem todas adotem o título ‘bispo’ para seus Ministros,
acolhem o governo episcopal, porquanto, em regra, a linha de comando ocorre de
cima para baixo através do cargo ou carisma exercido pela personagem dirigente.
Neste sistema inexiste consulta ou interferência das comunidades locais nas
decisões tomadas pelo clero.
Governo Presbiteriano:
A autoridade para governar a igreja recai sobre um Conselho constituído de
presbíteros entre os quais um dispõe da prerrogativa para exercer o ministério
pastoral da comunidade a qual servem.
As igrejas reformadas, em geral, adotam essa
forma de governo, cuja característica marcante reside no exercício da liderança
por um grupo específico chamado presbitério. Todavia, é primordial ter em mente
que “O presbiterianismo […] reconhece o direito de cada igreja participar da
escolha dos pastores”[2]. Fato que, a rigor,
diferencia esse sistema do sistema episcopal, visto que pastores e liderança
local são determinados pelos bispos.
Governo Congregacional:
A depender da igreja, esse tipo de governo
assume forma diferente. No tocante ao escopo traçado neste texto podemos
subdividir o Governo Congregacional em dois modelos, cujo ponto de convergência
se encontra no fato de a igreja local dispor de autonomia para condução de suas
atividades administrativas. A seguir vamos expor os subtipos de Governo
Congregacional.
Outras variações de governo eclesiástico são
encontradas na experiência de diferentes igrejas[3], porém
as mais importantes, mencionadas por estudiosos do tema, foram apresentadas
acima.
Nos debruçaremos mais detidamente sobre o
modelo congregacional, sobretudo o de feitio indireto, por ser este o assumido
pela AICEB.
ESPÉCIES DE GOVERNO CONGREGACIONAL
Governo Congregacional Absoluto:
O Governo Congregacional Absoluto se expressa através do poder máximo e não
modulado, por qualquer outra instância, exercido pela igreja local. A
comunidade de fiéis desempenha papel chave na condução de seu destino temporal.
Nessa espécie de governo não se admite nenhuma interferência exterior. Os
membros constituintes da igreja local são absolutamente autônomos para
gerenciar seus interesses. Com efeito, todas as decisões tomadas são objeto de
discussão em assembleias convocadas, especialmente com este fim.
Wayne Grudem chama esse modelo de governo de
“Democracia absoluta”, porquanto, é um modelo “[…]que leva o governo
eclesiástico congregacional às últimas consequências, […]”. E mais “Em tal
sistema tudo precisa ser levado às reuniões da congregação”[4].
Não obstante concordar com Grudem sobre a
descrição feita a respeito dos pormenores do governo acima, julgo a palavra
democracia não tão apropriada para o contexto, posto remeter a ideia de que as
demais subespécies de governo congregacional não seriam portadoras de
democracia plena ou absoluta; portanto, prefiro a expressão Governo
Congregacional Absoluto, pois salienta o governo exercido pela igreja local,
livre de qualquer interferência, em contraposição ao Governo Congregacional
Indireto, o qual valoriza a democracia, contudo permite que o poder da igreja
local seja mitigado em determinadas áreas.
Diz-se que as Igrejas Batistas em geral,
assim como as Igrejas Congregacionais são estruturadas sob esse regime de
governo. Em regra, a denominação a qual as igrejas locais estão vinculadas
desempenham papel meramente fraterno e cooperativo. Por óbvio, a relação entre
a igreja local e a estrutura denominacional perpassa a esfera da cooperação em
campanhas de missões e projetos comuns, pois, seguramente, há afinidade
doutrinária. No entanto, a autonomia da congregação não sofre alteração.
Repisemos: Governo Congregacional Absoluto é
aquele exercido por uma igreja local, sem submissão a qualquer interferência de
autoridade externa ou interna. Todas as decisões são tomadas com base no
próprio arbítrio dos membros arrolados, sem mediação de leis ou autoridades
eclesiásticas estranhas à sua organização. Esse não é o governo adotado pela
AICEB. Analisemos o próximo modelo de congregacionalismo.
Governo Congregacional Indireto
(Relativo):
Governo Congregacional Indireto é aquele em que a igreja local relativiza ou
modula seu poder e o entrega a um ente ou grupo de pessoas que assumem a
responsabilidade de administrar determinadas áreas de suas atividades. Neste
sentido, a igreja local abre mão de sua autonomia absoluta, a fim de se
submeter a determinados cânones e autoridades sobre ela constituídos. Em razão
dessa peculiaridade esse tipo de governo é chamado de Governo Congregacional
Indireto ou Representativo.
O art. 42, caput do Estatuto da AICEB define
de maneira inequívoca que as “Igrejas Cristãs Evangélicas da AICEB adotam o
Regime Bíblico Congregacional Indireto […]”. De fato, a inteligência do
referido dispositivo legal assinala qual o modelo de governo as igrejas, reunidas
em Convenção Geral, abraçaram. Importante frisar que esse regime não é fruto de
novidade no meio da AICEB, porquanto, como preleciona o Reverendo Abdoral Silva
“O regime congregacional indireto é o sistema adotado pelas igrejas da AICEB
desde seu início”[5].
Faz-se oportuno sublinhar que o governo
congregacional indireto é assim entendido, no contexto da AICEB, por duas
razões fundamentais registradas em seu Estatuto. Vejamos:
Primeiramente o Governo é Congregacional
Indireto em razão de as igrejas locais estarem submissas a intervenção externa
em matéria claramente definida no Estatuto da AICEB. É o caso, por exemplo de:
Governo local. As igrejas se obrigam a
estabelecer seu governo, consoante o disposto nos artigos 42, caput e parágrafo
único, 50 a 53. A AICEB optou por esse regime de governo e o consagrou em seu
Estatuto; por conseguinte, é vedado à igreja local adotar forma de governo
presbiteral, episcopal, congregacional absoluto. O governo da AICEB é o Regime
Bíblico Congregacional Indireto.
Contribuição financeira para a AICEB.
Nenhuma igreja local dispõe de autonomia para se negar à observância da
contribuição financeira, conforme art. 54, inciso I;
Documentos de organização local. A igreja
local deve se submeter aos princípios essenciais estampados no Estatuto Modelo
fornecido pela AICEB, art. 48, inciso IV;
A igreja local indispõe de autonomia para
destoar das doutrinas cridas e sustentadas pela AICEB, art. 48, inciso V
Disciplina. A igreja local responde, perante a AICEB, pela inobservância de
tudo que se comprometeu cumprir. Desse modo, ao infringir os cânones aprovados
pela AICEB, a Igreja local sofrerá intervenção de acordo com art. 57 e 58 do
Estatuto Geral.
Em segundo lugar, o governo das igrejas da
AICEB é Congregacional Indireto por causa de sua submissão as autoridades
eleitas pela congregação, responsáveis por administrar seus negócios no âmbito
local. O parágrafo único do artigo 42 enfoca alguns aspectos do governo da
igreja local que precisamos compreender.
A assembleia da igreja é instância máxima no
que diz respeito a ‘deliberação’. Ou seja, à semelhança das assembleias da
Convenção Geral ou regional, a assembleia da igreja local perdeu seu caráter
administrativo. O eixo administrativo, antes compartilhado pela assembleia, foi
deslocado e atribuído somente à Diretoria e ao Conselho da Igreja (cf. artigos
50 ao 53).
À assembleia da igreja compete deliberar
sobre questões gerais elencadas nos incisos I ao VII do artigo 53. Após eleger
sua liderança, inciso III, art. 53, a igreja entrega a seus oficiais o poder de
representa-la na administração de uma série de minudências, evitando, assim, a
necessidade de intermináveis reuniões.
A realização de assembleias constitui fator
imprescindível do governo aicebiano. Aliás, sem assembleias, onde são
discutidos assuntos pertinentes à vida e destino da organização religiosa
local, o caráter congregacional seria perdido e regime de governo previsto no
art. 42 se descaracterizaria.
Outro aspecto do governo congregacional indireto adotado pela AICEB consta da
expressão “cujos assuntos serão discutidos após parecer da Diretoria ou do
Conselho”. A dicção do parágrafo demonstra com solar clareza que a assembleia
não possui prerrogativa para levantar assuntos novos na reunião que está se
desenrolando, ou seja, sem o parecer das instâncias administrativas.
De todo o exposto, percebe-se que a AICEB
tem um tipo de governo específico: o Regime Bíblico Congregacional Indireto.
Neste, são homenageados tanto as autoridades externas: Estatuto, Confissão de
Fé e atos normativos das Convenções e da Diretorias Geral e Regionais; ao tempo
que se prestigia também as autoridades internas: Pastor, Diretoria, Conselho e
demais lideranças constantes de seu Estatuto e Regimentos. Por certo, essa
deferência concedida as autoridades mencionadas, não furta da congregação o
poder decisório sobre questões relevantes para sua vida, inclusive de demissão
de pastores e administradores.
Parece-me acertado o caminho seguido pela
AICEB, posto que, de um lado, minimiza o desgaste e emperramento da máquina
administrativa ao designar poder a uma liderança espiritualmente madura, a fim
de conduzir os rumos administrativos da igreja; por outro lado, evita que um
pequeno grupo se assenhoreie da igreja e cale a voz da congregação em matéria
que o bom senso manda ouvir a todos.
REFERÊNCIAS
[1] CULVER,
Robert. Teologia Sistemática Bíblica e Histórica. São Paulo: SHEDD, 2012, p.
1213. O autor levanta, com base em A. H. Strong, uma multiplicidade de
evidências que assinalam um tipo de organização dos primeiros cristãos.
Organização, sem dúvida constituída de liderança, reuniões e certas regras
próprias de governo. Vale a pena conferir.
[2] MILNE,
Bruce. Estudando as Doutrinas da Bíblia. São Paulo: ABU, 1993, p. 250.
[3] Para um
estudo mais aprofundado do tema ver ERICKSON, M. Teologia Sistemática. São
Paulo: VIDA NOVA, 2015. Veja, especialmente, GRUDEM, W. Teologia Sistemática.
São Paulo: VIDA NOVA, 2002. Nesta obra o autor expande o conceito de Governo
Congregacional e apresenta uma série de detalhes caracterizadores de cada um
dos subtipos expostos.
[4] GRUDEM,
Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: VIDA NOVA, 1999, p. 785. De certa
forma, Grudem critica esse sistema de governo por entende-lo prejudicial, na
medida em que a assembleia pode promover discussões intermináveis acerca de
assuntos facilmente resolvidos por uma liderança amadurecida na qual repousa o
poder de representar os demais fiéis. Concernente ao modelo de governo
congregacional, Grudem expõe uma lista contendo cinco espécies presentes em
igrejas independentes.
[5] SILVA,
Abdoral. Valorize Sua Identidade. [S.L.: s.n.], [2005?], p. 23. Neste trabalho,
Rev. Abdoral Silva deixa transparecer que o modelo de governo idealizado por
ele para a AICEB seria o Regime Congregacional Indireto no que diz respeito a
relação com a estrutura da denominação, mas no tocante a administração e
resolução de assuntos internos, sua visão, parece-me, é de Governo
Congregacional Direto ou Congregacional Absoluto. A citação, por exemplo, feita
por ele de um autor congregacionalista absoluto sinaliza seu pensamento sobre o
assunto. Assim se expressa o autor citado: “Congregacionalismo é o governo do
povo para o povo. A maioria é que vence. Assim como se nota nas igrejas,
nota-se também nas convenções. Estas são convocadas pelo órgão oficial ou
circulares e a maioria presente resolve”. Pela anuência a citação vertida em
sua obra, resta afigurado que o saudoso líder da AICEB pensava as igrejas
locais como entidades autônomas em relação à sua condução interna.
Rev. Inácio Pimentel Pinto
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