A CURA DOS OLHOS
Pr. Ignácio Pinto |
Não
raras vezes nos deparamos com pessoas que alimentam a alma com uma visão
absurdamente distorcida da realidade presente. Sucede que, invariavelmente, tal
visão pode decorrer do modo como se enxerga o mundo a nossa volta e não, de
fato, como ele realmente se apresenta.
Joaquim
Manuel de Macedo escreveu um delicioso romance no século XVIII com o título “A
Luneta Mágica” onde pinta um quadro conflituoso entre o bem e o mal, numa
assombrosa guerra na vida de um homem tolo. Simplício, a personagem
protagonista, padece de grave miopia física e moral que o impede de discernir
corretamente o ambiente no qual vive.
Assim,
nesse palco dramático de uma vida absolutamente insossa, Simplício encontra a
possibilidade de vislumbrar as cores da vida ao receber, de um armênio mágico,
um óculos que o faria ver tudo a seu redor. Ocorre, contudo, que o óculos
mágico trazia consigo um plus que
dava a seu usuário a capacidade de conhecer o lado maligno de todas as coisas.
De fato, Simplício descobriu a face grotesca das pessoas. Falsidades,
maledicências, segundas intenções, interesses espúrios etc. compunham o tecido
da personalidade e caráter da gente que cercava o parvo homem. Desesperado, Simplício
passou a desconfiar de todos e tudo; e, assim, se trancou em seu mundo,
porquanto, o mundo que o circundava era tragicamente marcado pela maldade.
Acontece
que Simplício teve novo encontro com o armênio, que, dessa vez, lhe ofereceu
outro óculos capaz de detectar somente o lado bom de tudo. O lado horroroso das
pessoas cedeu lugar, na alma apoucada de Simplício, a tudo que de mais gracioso
poderia conceber uma mente infantil. Diante dessa situação, Simplício se
entregou, confiou e amou até o limite que seus olhos, atados pela visão
distorcida de uma luneta mágica, podiam enxergar. Como não poderia deixar de
ser, apareceram larápios que se aproveitaram da ingenuidade de Simplício, para
em seguida, às costas, rirem do simplório homem.
Diante
da constatação do escárnio que faziam dele, Simplício, engolfado pelo
desespero, resolveu dar cabo à própria vida. Todavia, eis que o armênio
apareceu novamente e lhe entregou um terceiro óculos; dessa vez com lentes do bom senso. Ao reler o romance
de Joaquim Macedo lembrei-me das palavras do Senhor Jesus:
A lâmpada do corpo é o olho. Portanto,
se teu olho estiver são, todo teu corpo ficará iluminado; mas se teu olho
estiver doente, todo teu corpo ficará escuro. Pois se a luz que há em ti são
trevas, quão grandes serão as trevas! (Mateus 6,22-23).
Para
o Senhor Jesus, os olhos são peças importantes na relação com o universo que
nos circunda. Depreendemos destas palavras, do Senhor, que o ser humano dispõe
da capacidade de ver o mundo pelo menos de duas maneiras. A primeira maneira é a física. Neste sentido, o mundo é a soma
literal de todas as coisas; se resume apenas à visão concreta de tudo que
existe. Essa forma de ver depende mais da coisa vista do que de quem a vê. O que se enxerga é o que está posto e da
forma como se encontra, sem intervenções ou interpretações subjetivas. A segunda maneira de ver tudo, não
depende necessariamente do outro, ou do objeto olhado, mas do sujeito olhante. Esse tipo de olhar exige de
quem olha, uma visão transformada pela graça divina; porquanto, bondade,
beleza, edificação, etc. encontram-se indivorciavelmente atreladas a olhos que
experimentaram cura. Zaqueu, por exemplo, foi visto pelas pessoas como
assombroso pecador; por Jesus, como filho de Abraão que, alcançado pela graça,
chegou ao arrependimento (Cf. Lc 19:1-19). Os escribas e fariseus enxergaram a mulher
adúltera, como pecadora digna da pena capital; Jesus lançou sobre ela um olhar
que, não obstante o gravíssimo pecado cometido deveria ter uma segunda chance
(cf. Jo. 8:1-11). Para Simão, o fariseu, a mulher que ungiu os pés de Jesus não
passava de uma depravada indigna de contato e Jesus um impostor, visto não discernir
a indignidade da mulher; Jesus, contudo, vai além da miopia física e moral do
fariseu e percebe que aquela mulher é uma alma sedenta que compreendeu sua
visceral necessidade de compaixão (cf. Lc 7:36-50).
Repare
que do ponto de vista físico a realidade é a mesma para todos, entretanto,
quando o foco se desloca para os olhos de quem enxerga e não de quem é
enxergado a realidade muda. Jesus é a perfeita expressão dum olhar sadio. Ele
não nega a malignidade presente, mas dá a chance para que a graça superabunde e
escorrace o mal que teima em nos destruir.
Ao
usar a luz como metáfora dos olhos é óbvio que Jesus fê-lo sabendo que estes
captam a realidade exterior através de processos protagonizados pelo cérebro. É
lícito, portanto entender que o que carece de cura é a psique (mente) humana, a
fim de interpretar corretamente e, por conseguinte, se relacionar bem com o
mundo com o qual interage a despeito de sua malignidade.
Na
lógica de Cristo, se o instrumento do corpo (o olho) responsável por iluminá-lo
padece de cegueira, todo o corpo está fadado à escuridão. A totalidade do ser
vive na luz ou nas trevas a depender da saúde ou enfermidade dos olhos. Ora, é
evidente que o Senhor intencionava apontar a incapacidade de muita gente de
voltar sua visão para o reino divino e enxergar Jesus como a Luz que ilumina a
alma para a salvação. Os fariseus e religiosos em geral eram destituídos de
olhos saudáveis, consequentemente, tudo que conseguiam divisar em Jesus eram
perplexidade e espanto, pois seus olhos continuavam fortemente fechados para a
graça desabrochada entre nós através do Deus que se fez gente.
Lamentavelmente,
à semelhança de Simplício, existem pessoas que vivem numa eterna gangorra,
convulsionadas pela instabilidade de sua miopia moral e movidas por uma personalidade
fraca tendem a emitir juízo temerário sobre tudo e todos, posto que não se
entregam ao labor de conhecer as coisas em sua totalidade, mas somente aspectos
do todo. Com efeito, dominadas por olhos enfermos, tais pessoas, constroem
imagens caricatas da realidade. E pior, reputando-se detentoras do verdadeiro
conhecimento põem-se num exercício prazeroso de autofagia (se consomem no saber
e conhecimento que reputam ter) sem saber que outros olhos riem-se dessa
gigantesca tolice.
Em verdade, lançar o olhar sobre o
mundo (não falo de sistema mundano, mas de coisas) constitui um exercício de
sabedoria e fé. Sabedoria para olharmos, interpretarmos e interagirmos com a
realidade a partir das lentes da Palavra de Deus. Fé para, a despeito da
malignidade no qual o mundo está absorto, crer que há esperança, pois Cristo
como Luz do mundo continua a irradiar seu brilho restaurador a olhos que
necessitam ser curados (cf. Mc. 8:22-26). Deus em Cristo e sua inerrante,
imutável e suficiente Palavra são as lentes do bom senso que fornecem ao cristão a capacidade para analisar, compreender
e interatuar com o mundo que o cerca. Sem essas lentes a realidade se mostra
distorcida e as pessoas trilham caminhos avessos à vontade de Deus, na mais
absoluta certeza de que estão no caminho certo; e, como Simplício, caminham em
direção à morte (cf. Pv. 14:12). Que a luz salvadora do Cristo encarnado
descerre as trevas que dominam seus olhos!
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